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O perigoso fetiche pelas armas de fogo

01:30 | 10/06/2019

Há diversas pesquisas que demonstram de forma evidente a relação entre o acesso disseminado às armas de fogo e o incremento da violência. O estudo mais recente, da Universidade de Stanford (EUA), comprova, por meio de sofisticadas análises estatísticas, que a hipótese "mais armas, menos crime" não possui qualquer sustentação científica. O que ficou provado, contudo, é que a adoção de leis mais liberais para o porte de armamentos em alguns estados americanos fez com que os crimes violentos aumentassem substancialmente.

Gosto de citar os Estados Unidos como referência porque o País é considerado um exemplo pelos defensores do uso irrestrito de armas de fogo. O que os pesquisadores de lá estão provando, por meio de estudos cada vez mais abrangentes, é que armar a população não é uma resposta eficaz aos desafios da segurança pública.

Se não há embasamento científico e nem respaldo de quem estuda o assunto por décadas, por que os defensores do armamento indiscriminado ainda insistem nessa tese? A explicação desse apego desordenado às armas de fogo vai além de qualquer aspecto racional, devendo ser procurada na construção da personalidade masculina. Em termos clínicos, podemos dizer que tais homens possuem hoplofilia, ou seja, um amor exagerado por armas de fogo. Só isso explica a necessidade de exibir revólveres e pistolas em redes sociais, pendurá-las em seu ambiente de trabalho ou até mesmo empregá-las como adornos de vestimentas.

Vale ressaltar que não faço menção aqui aos profissionais que têm na arma de fogo um instrumento de trabalho ou a pessoas que por algum determinado motivo precisam se valer da posse do armamento como uma questão de autodefesa. Meu foco reside em quem ostenta e se vale da sensação generalizada de insegurança para defender leis que armem ainda mais a população, desconsiderando as consequências nefastas que tal medida venha a acarretar.

Mas de onde vem tanta hoplofilia? É preciso descer até às raízes da masculinidade tóxica para que se possa entender essa relação por vezes erótica com um artefato criado única e exclusivamente para ameaçar, ferir e matar. Uma pista para explicar esse fenômeno é o conceito de fetichismo. Em uma de suas definições, o fetiche (feitiço) é um objeto que incorpora algo que queremos, mas não podemos ter. Ao analisar o modo como as armas de fogo possuíam um papel central nos filmes e seriados de faroeste, Roderick McGillis, professor da Universidade de Calgary (Canadá), afirma que a "arma é um substituto para algo perdido". "A relação do homem com sua arma é uma relação que encobre uma falta, uma inadequação e uma incompletude. Ao carregar uma arma, o homem pode se sentir completo, forte e confiante enquanto no resto do tempo permanece insatisfeito", revela.

A estreita ligação entre armas e masculinidade é forjada ainda na infância. Para Henri Myrttinen, estudioso da relação entre jovens e violência armada, as armas fazem parte de uma noção de "masculinidade militarizada que equipara 'hombridade' com o 'uso sancionado da agressão, força e violência'". Quem nunca brincou com armas de brinquedo, imaginando estar atirando em um inimigo invisível? Eu mesmo andava pela casa, quando criança, portando uma réplica perfeita de um revólver calibre 38. Não à toa, uma das medidas da flexibilização do uso de armas de fogo é a possibilidade de que crianças e adolescentes possam usá-las para fins da prática de tiro esportivo.

Segundo Myrttinen, quando os homens jovens recebem uma arma dos pais (mesmo que não letal) é um passo que pode ser visto como "um rito da passagem da infância para a idade adulta, evocando, conscientemente ou não, imagens de um pretenso passado dourado de homens caçadores ou guerreiros".

Em um contexto de maior igualdade entre os gêneros onde cada vez mais os papéis sexuais são fluidos, a bandeira do porte de arma se une às pautas mais conservadoras da sociedade. A meta é retornar a um período histórico em que a dominação masculina ocorria sem tanta resistência e no qual as mulheres eram enquadradas socialmente sempre em funções subalternas. Regredir a esse ponto, no entanto, só será possível por meio da imposição e da subjugação armada.

Quem defende o não-armamento da população precisa denunciar o caráter fetichista dessas medidas. A violência armada é um fenômeno complexo que exige investimentos em investigação, inteligência e melhorias profundas no nosso sistema de justiça criminal. As políticas de segurança pública têm de ser tratadas de forma séria e responsável, não devendo ser objeto para descarregar frustrações e vontade de poder alheias.

O Povo