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A Fortaleza que me custa enxergar

05:00 | Fev. 26, 2019
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Tipo Notícia

Raiane Ribeiro

Num dos trajetos diários, observo Fortaleza pela janela de um ônibus. Olho o Centro da cidade e tento enxergá-lo de maneira diferente; me concentro e tento fingir que sou turista na minha cidade natal. Fugazmente, capto o novo, enquanto ele se mistura ao velho e ao mal cuidado.

Prédios recentes de arquitetura antiga fazem vizinhança para os que estão ali desde antes de eu existir. Fachadas desmoronando; fachadas pichadas com protestos ininteligíveis; fachadas sobrevivendo a nós, ao caos. Gente espalhada vendendo, comprando, olhando. Em lojas, barracas, improvisos. Todos tentam sobreviver. Ao mundo, ao capitalismo, a eles mesmos. Queria que fosse tarefa fácil.

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Mais à frente, eu vejo gente cuja casa é a rua; de teto pura e unicamente o céu da capital. Por mais que eu me esforce para sair de mim e compreender a realidade alheia, não consigo imaginar a vulnerabilidade. Mulheres dormem no meio da rua, cobertas por um pedaço de lençol fino; deitadas diretamente no chão ou suportadas por colchões velhos ou papelão.

Não sei que vida é essa, quem elas são, o que pensam ou ainda esperam. Queria saber. Não sei como saber. Não quero invadir e explorar por pura curiosidade. Guardo os questionamentos com alguma esperança de que, um dia, eles não existam mais. Na esperança de que estas pessoas, ou as próximas por vir, não existam nestas condições.

Eu tento e tento mais um pouco.Tento sair de mim para enxergar Fortaleza por outros olhos. Talvez se eu estivesse na Beira Mar, acompanhada da praia, cercada por prédios altos e restaurantes chiques, eu conseguiria ver de uma maneira diferente. Talvez se eu estivesse no Parque do Cocó, na presença inédita e escassa de árvores, eu conseguiria sentir a cidade de outra maneira.

Tento ver para além de: esta é a rua onde fui seguida e sexualmente assediada; aqui é onde fui agredida e assaltada pela primeira vez. Aqui, no fim da minha avenida preferida, na avenida que tem sido sinônimo de casa desde que me mudei para cá, um colega de escola foi assassinado. É difícil me desentrelaçar dessa narrativa. Em Fortaleza, todas as minhas memórias estão manchadas pela violência.

 

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