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Conversa com a mãe

01:30 | 24/07/2019

Eu não saberia por onde começar se realmente precisasse falar com a mãe, dizer tudo que valha a pena, fazê-la sentar um segundo e novamente perguntar como havia conhecido o pai e o que sentira. Pedir que refaça os caminhos daquele dia, e então ouvi-la mais uma vez admitir que não lembra ao certo, a memória já se esfiapando como o fio da manta do sofá da sala que resistimos em trocar e aos poucos se esgarça.

E, no entanto, ainda que não soubesse por onde partir, a conversa levaria a vereadas e caminhos nunca visitados, no rememorar da mãe se acenderiam chispas de um tempo escuro e nele é possível que encontrássemos juntos esse momento a partir do qual as coisas se desfizeram.

Tudo arruinado, os anos compactados como uma massa de bolo que esquecemos sobre a mesa da cozinha e depois a encontramos no dia seguinte. Está ressecada, esfarela ao contato com os dedos e não serve a muito cozimento. Inútil preservá-la como se preservam álbuns de família, corroídos mas legíveis décadas e décadas no futuro.

Dessa massa, no entanto, a mãe extrai pedaços da vida e os apresenta na sala como um filme que exibe. É o filme de nossa casa, do nosso sangue, todas as estripulias de criança, o primeiro corte na testa, a queda do muro que abriu a carne do braço, o cartão de vacina, até o dente da irmã que a mãe guardara de repente surge na palma da sua mão. Pequeno, ovalado, quase como uma pedra de jardim que se achasse menor entre as pedras maiores.

Memorabilia, digo à mãe, que segue agora em trabalho de costura dos fios soltos. Lembra quando você se extraviou da escola? Balanço a cabeça, e repetimos todos como se nada fosse conhecido. Voltava do colégio quando, ameaçado por garoto mais forte, intuí que o melhor caminho seria outro que não o habitual, mas o caminho estranho levou a outro que levou a outro, e em instantes estava longe do bairro, longe de casa, longe da mãe. Não desesperei. Andei sempre em frente, já fim da manhã e hora de almoço, nas casas pequenas de vilas o cacarejo de colheres em pratos de alguidar. Achou-me um amigo da família, que me levou de volta à casa, onde encontrei o pai com a cabeça afundada nas mãos, chorando, enquanto a mãe lhe preparava talvez uma garapa de açúcar.

A irmã tinha morrido pouco antes, de modo que era apenas eu ocupando os três cômodos da casa. Pergunto à mãe se imaginou que eu me esfumaria no mundo para sempre, ela não respondeu, pelo contrário, lançou uma dúvida que nunca havia esboçado antes em todos esses anos. Se alguma vez eu pretendera abandoná-los, à mãe e ao pai, quando era criança, se tinha por eles qualquer reserva, se queria lhe contar qualquer coisa. Eu lhe disse que não, não e não, perdera-me na volta da escola porque o medo fez-me andar a esmo sem olhar para trás, tateando nas esquinas do bairro um olhar que fosse hostil e desviando dos perigos.

A mãe sorri e emenda, lembra quando lhe cortamos o cabelo como o de um artista famoso e não ficou bem? Eu recordava da mecha de cabelo liso caída pela testa, as bochechas, os olhos arregalados de menino que hoje vejo reproduzirem-se nos da filha, também ela muito parecida com a avó sem de fato ainda entender, o mesmo fio fino de cabelo como a linha que se estendesse de um passado ao tempo de agora, enredando a todos.

 

Henrique Araújo