Agência BBC

'Todos os migrantes têm que pagar pela travessia... mas das mulheres se espera também sexo'

Esther diz que sofreu violência sexual em sua jornada à Europa após fugir de abusos na Nigéria.

06:08 | Dez. 09, 2025

Por: Sofia Bettiza - Repórter de Saúde Global em Trieste, Itália

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Esther fugiu de Lagos em 2016

Esther dormia nas ruas de Lagos quando uma mulher se aproximou com a promessa de tirá-la da Nigéria e levá-la à Europa, com emprego e moradia.

Sonhava com uma nova vida, sobretudo no Reino Unido. Expulsa de um lar adotivo violento e abusivo, tinha pouco a que se apegar. Ao deixar Lagos, em 2016, e cruzar o deserto rumo à Líbia, no norte da África, não imaginava a trajetória traumática que enfrentaria, marcada por exploração sexual e por anos de pedidos de asilo em diferentes países.

A maioria dos imigrantes irregulares e solicitantes de asilo é composta por homens — 70%, segundo a Agência Europeia para o Asilo (EUAA, na sigla em inglês) —, mas cresce o número de mulheres como Esther, que chegam ao continente em busca de proteção.

"Vemos um aumento de mulheres viajando sozinhas, tanto na rota do Mediterrâneo quanto na dos Bálcãs", afirma Irini Contogiannis, da ONG International Rescue Committee, na Itália.

O relatório de 2024 da entidade registrou alta anual de 250% no número de mulheres adultas desacompanhadas que chegaram ao país pela rota dos Bálcãs, uma das principais rotas migratórias de entrada na Europa, enquanto o total de famílias cresceu 52%.

As rotas migratórias são notoriamente perigosas. Em 2024, a Organização Internacional para as Migrações (IOM, na sigla em inglês), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), contabilizou 3.419 mortes ou desaparecimentos de migrantes na Europa, o ano mais letal já registrado.

Para as mulheres, soma-se o risco de violência sexual e exploração, como ocorreu com Esther após ser traída por quem lhe prometera uma vida melhor.

"Ela me trancou num quarto e levou um homem. Ele fez sexo comigo à força. Eu ainda era virgem", diz Esther. "É isso que fazem… viajam por aldeias na Nigéria para pegar meninas, levá-las para a Líbia e transformá-las em escravas sexuais."

"As experiências delas são diferentes e, muitas vezes, mais arriscadas", afirma Ugochi Daniels, da IOM, à BBC. "Mesmo mulheres que viajam em grupo raramente têm proteção consistente, o que as expõe ao abuso de coiotes, traficantes ou outros imigrantes."

Muitas mulheres conhecem os riscos, mas seguem viagem levando preservativos ou usando métodos contraceptivos caso sejam estupradas no percurso.

"Todos os imigrantes têm de pagar a um contrabandista", diz Hermine Gbedo, da rede antitráfico Stella Polare. "Mas de mulheres se costuma esperar que ofereçam sexo como parte do pagamento."

Gbedo apoia migrantes em Trieste, cidade portuária no nordeste da Itália que há muito funciona como ponto de passagem e principal porta de entrada na União Europeia para quem cruza pelos Bálcãs. Dali, seguem para países como Alemanha, França e Reino Unido.

Barbara Zanon/Getty Image
A maioria dos migrantes que chegam a Trieste pela rota dos Bálcãs é masculina

Após quatro meses de exploração na Líbia, Esther fugiu e atravessou o mar Mediterrâneo em um bote inflável. Foi resgatada pela guarda costeira italiana e levada à ilha de Lampedusa, mais próxima da costa da Tunísia (África) do que da Itália (Europa). Ela pediu asilo três vezes antes de receber o status de refugiada.

Solicitantes de países considerados seguros costumam ter o pedido rejeitado. Na época, a Itália classificava a Nigéria como insegura, mas mudou a avaliação dois anos atrás, em meio ao endurecimento das regras migratórias em toda a Europa depois do grande fluxo de 2015-16. Desde então, pressões por novas restrições só aumentaram.

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A jornada de Esther da Nigéria à Líbia, Itália, França, Alemanha e retorno à Itália

"É impossível sustentar a migração em massa, não tem como", afirma Nicola Procaccini, deputado do governo de direita da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni. "Podemos garantir uma vida segura às mulheres que realmente estão em perigo, mas não a todas."

"Temos de ser racionais", diz Rakib Ehsan, pesquisador sênior do think tank (centro de estudos e debates) conservador Policy Exchange. "Precisamos priorizar mulheres e meninas que estejam em risco imediato em territórios afetados por conflitos, onde o estupro é usado como arma de guerra."

Hoje, isso não ocorre de forma consistente, avalia Ehsan. Embora se declare solidário às mulheres que enfrentam rotas perigosas rumo à Europa, afirma que "a chave é a compaixão controlada".

Mas muitas mulheres que chegam de países considerados seguros relatam que sofreram abusos por serem mulheres e que isso tornou a permanência no país de origem impossível.

Foi o caso de Nina, 28, do Kosovo (sudeste da Europa).

"As pessoas acham que tudo vai bem em Kosovo, mas não é verdade", afirma. "As coisas são terríveis para as mulheres."

Nina conta que ela e a irmã foram abusadas sexualmente pelos namorados, que as forçaram à exploração sexual.

Um relatório de 2019 da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) indica que 54% das mulheres em Kosovo sofreram violência psicológica, física ou sexual de parceiros íntimos desde os 15 anos.

Segundo a Convenção de Istambul, do Conselho da Europa, mulheres perseguidas por violência de gênero têm direito a asilo. A norma foi reforçada por uma decisão histórica do principal tribunal europeu em 2024. A Convenção define violência de gênero como psicológica, física e sexual, incluindo a mutilação genital feminina (FGM, na sigla em inglês).

No entanto, os termos ainda não são aplicados de forma uniforme, segundo apontam organizações de apoio.

"Muitos agentes de asilo em campo são homens sem formação suficiente para lidar com um tema tão delicado [como a mutilação genital feminina], tanto do ponto de vista médico quanto psicológico", afirma Marianne Nguena Kana, diretora da End FGM European Network.

Ela acrescenta que pedidos são negados com base na suposição equivocada de que, por já terem passado pela FGM, essas mulheres não correm mais risco. "Já ouvimos juízes dizendo: 'Você já foi mutilada, então não é perigoso voltar ao seu país, porque não podem fazer isso com você de novo'", relata.

Em casos de violência sexual, explica Carenza Arnold, da organização britânica Women for Refugee Women, a prova costuma ser mais difícil, porque o abuso não deixa marcas visíveis como a tortura física, e tabus culturais tornam o relato ainda mais complexo.

"As mulheres muitas vezes são apressadas no processo e podem não revelar ao oficial de imigração, que acabaram de conhecer, a violência sexual que sofreram", diz Arnold.

Segundo a Organização Internacional para as Migrações (IOM), grande parte da violência enfrentada por mulheres ocorre durante a viagem. "Mulheres normalmente fogem de violência sexual praticada por parceiros em seu país de origem e, durante o trajeto, enfrentam o mesmo novamente", afirma Daniels.

Foi o que aconteceu com Nina e a irmã ao fugirem dos ex-companheiros em Kosovo rumo à Itália. Viajando com outras mulheres, cruzaram florestas da Europa Oriental tentando evitar as autoridades. No caminho, relatam ter sido atacadas por homens migrantes e contrabandistas.

"Mesmo nas montanhas, no escuro, dava para ouvir os gritos", lembra Nina. "Os homens vinham com lanternas, iluminavam nossos rostos, escolhiam quem queriam e levavam para dentro da mata. À noite, eu ouvia minha irmã chorando, pedindo ajuda."

Nina e a irmã disseram às autoridades italianas que seriam mortas pelos ex-namorados se voltassem ao Kosovo e receberam asilo.

A luta de Esther para obter proteção foi mais longa. Ela pediu asilo pela primeira vez na Itália em 2016, mas, após longa espera, seguiu para a França e depois para a Alemanha, onde teve os pedidos negados. Pelo Regulamento de Dublin, da União Europeia, o pedido de asilo deve ser apresentado no primeiro país europeu de entrada.

Esther recebeu o status de refugiada na Itália em 2019.

Quase uma década depois de deixar a Nigéria, ela se pergunta se a vida atual na Itália compensou o sofrimento vivido no caminho: "Nem sei o motivo de ter vindo para cá".