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Íntegra da entrevista com Manoel Ricardo de Lima
Vida & Arte

Íntegra da entrevista com Manoel Ricardo de Lima

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O POVO - Como vem se dando a tentativa de diálogo com a produção de Ana Cristina Cesar?

Manoel Ricardo de Lima - Não acompanho isso de muito perto. Leio Ana Cristina Cesar como uma poeta que é, no mínimo, uma armadilha para a diferença. E o que mais me interessa no pensamento dela com o poema é uma experiência radical entre corpo e biblioteca. Uma poeta-leitora. Esse livro é por causa dessa convicção deliberada de seus poemas: a do comentário àquilo que lia e que aparece em cada linha daquilo que escreve. Assim, quando retomei esse projeto no ano passado [2016], Ana Cristina Cesar era a “homenageada” da FLIP. E se tem uma coisa que me embaraça é o prisma do sentido de homenagem. Não queria que o livro fosse isso, nem muito menos fazer algo que cumprisse apenas um diálogo com a poesia de Ana Cristina Cesar – a proposição contida no diálogo, que sempre se estabelece entre acordo e desacordo, é muito frágil – , mas queria ver o que salta diante dos convites e das visitas que vêm como transparência, engano, erro, errância, quase num jogo de cabra-cega.

 

O POVO - O livro foi publicado numa versão mais restrita em 2008. Ganha, agora, por assim dizer, versão ampliada. Como foi a escolha dessas novas vozes poéticas?

Manoel Ricardo - Desde que fiz a primeira edição, em 2008 [Editora da Casa/Dantes Editora], a ideia fixa era armar e, ao mesmo tempo, desarmar conversas com os poemas de Ana Cristina Cesar, e que seria legal montar um livro com mais gente e que nessa composição – a de um estar juntos atravessados por diferimentos – pudesse também desfazer toda e qualquer ideia de antologia e de uma organização por afinidade, gosto, preferências, interesses etc. Aquele livro magro com 14 poetas era um começo de trabalho. Imaginei convidar pessoas – como se fossem visitas que entram num lugar que não sabem muito bem onde é ou o que é –, que corressem o risco de raspar a poesia e o pensamento da Ana Cristina com algo que lhes fosse comum e incomum e a partir daquilo que pensam, escrevem e das posições que tomam. Agora são 50.

 

O POVO - O que viu de comum - e incomum - entre essa produção poética e os trabalhos de Ana C. Cesar?

Manoel Ricardo - Bom, acho que aí é que o livro se elabora como presença, nessa composição de pessoas que têm trabalhos absurdamente diferentes e diante, ao menos, de um problema: se ainda é possível imaginar que o poema pode ser absurdamente diferente a cada um, a cada próprio, a cada outro etc. Inclusive em direção ao que a Ana Cristina Cesar projetou. E isto para tentar ampliar um gesto: fazer um livro de poemas todo escrito por outras pessoas e a partir de um pensamento que também não vem apenas daquilo que imagino. E isto me interessa muito, até para desfazer os mesmos modos de operação que cumprem as rotas da mercadoria e de tanto empenho em torno de um SI MESMO, como a organização usual de antologias. E assim, ao contrário, desfazer os mapas [esta estrutura fascista] e pensar uma poesia contra a poesia, uma poesia para destruir a poesia. Ou como diz o Leminski: vamos nos apressar antes que tudo se torne mercadoria.

 

O POVO - Ainda é possível compor um painel da poesia contemporânea?

Manoel Ricardo - Seguindo um pouco isso que diz o Leminski, vamos nos apressar, pensei o livro de uma maneira vagarosa em que a pressa vem contra o princípio deste contemporâneo absoluto e imediato, e isto é uma tarefa política. Uma espécie de graça contra a gravidade. E, ainda, fazer algo com muita gente, quase todos às cegas, também me interessa, porque desfaz essa ideia de que literatura é algo que se faz sempre sozinho. É que tem um lance narcísico diante das ideias de “painel”, “cena” e “cenário” ou “panorama”, “circuito”, “circulação”, “feiras”, “prêmios” etc., que me interessa muito pouco. Tanto que não acompanho mais isso de perto, às vezes nem de longe, esta quantidade de lançamentos, livros, eventos etc. Como digo no prefácio, tomara que “este livro passe ao largo de uma primeira ideia de ‘antologia’, isto que pode fixar, monopolizar ou monumentalizar toda e qualquer memória do poema e, mais ao largo ainda, de uma ideia de ‘poesia contemporânea’ quando a expressão, de tão generalizadora, imediata e esvaziada, tem gerado muito mais um sem número de traços conservadores ou posturas meramente espetaculares.”

 

O POVO - O livro reúne poetas de muitas partes do país. Há um esforço deliberado de, variando o espaço geográfico, tentar encontrar também uma variação de forma e conteúdo? A propósito, cabe ainda o rótulo de poeta contemporâneo?

Manoel Ricardo - A escolha é de fato deliberada e procura desfazer qualquer geografia fixa, monopolizadora, centralizadora, tanto de opiniões [esta fragilidade também fascista], quanto de nomes, lugares etc. Fui compondo o livro quase irresponsavelmente, mas também seguindo uma disposição para os leitores e leitoras de Ana Cristina Cesar que, de algum modo, enquanto escrevem, se escrevem, roubam, plagiam, enganam, mentem, gritam e morrem um pouco de alegria. Sem drama, sem tantos sintomas. E aí, tracei um jogo de enganos com poetas que foram muito generosos e abertos. Depois que encerrei o projeto [só duas pessoas não puderam ou não quiseram participar] do livro na editora, lembrava sempre de mais alguém, mas achei melhor parar porque isto podia não ter fim. E o jogo é sim com a forma ou com a posição que se toma no mundo, no caso, cada um que está ali e se cumpre a isso. E como livro é variado, disperso, diferido, pode ser também de cada um que assina cada poema. E nem pensei nisso do “poeta contemporâneo”, que acho uma pose e meramente um rótulo. E, repare, Giovanna Corbucci nunca publicou poemas, Carolina Machado idem, têm cerca de 20 anos de idade. E poetas como Carlos Augusto Lima e Júlia Studart são radicalmente silenciosos, não movem um dedo para além de seus livros e estão mais preocupados com as diabruras do pensamento, da vida. Juliana Krapp, que já publicou em várias revistas de poesia etc., me disse outro dia que não tem a menor vontade de publicar um livro. Puxa, poetas-muito-mais-leitores assim são exemplos do quanto é possível nos apressar contra o imediato da mercadoria.

 

O POVO - Como se expande hoje o universo de Ana Cristina? Falo de novas edições, mas também de novos leitores. Ela tem encontrado essa leitura arejada?

Manoel Ricardo - Acho que a Ana Cristina Cesar tem leitores e leitoras incríveis. Basta ver os livros da Maria Lucia de Barros Camargo, da Flora Sussekind, da Annita Costa Malufe e da Luciana di Leone em torno da poesia dela. Luciana, por exemplo, faz o posfácio deste livro – uma porrada –, tanto que não vejo nenhuma diferença de invenção entre o que ela escreve e qualquer outro texto do livro que aparece como “poema”. A minha ideia é propor um jogo com o comentário, com as formas de ler o pensamento com o poema que Ana Cristina Cesar fez com tanta força política, dignidade e sofisticação entre corpo e biblioteca. Ainda mais hoje, agora, diante do país devastado a todos os lados. Por isso, no prefácio, tento pensar se ainda é possível um gesto ao contrário, sem projeção idêntica ou mera pessoalidade, quando o poema é um animal, quando o poema borra todo e qualquer EU e esquarteja Narciso, quando nenhum poema se destina ao leitor e quando o poeta é ou ao menos se apresenta, mesmo que artificialmente, como um rival do mundo. E, se a poesia é o que toca ao animal, se é possível pensar um arejamento de leitura que ainda possa desequilibrar hierarquias e conjuntos para propor alguma irregularidade díspar. O pensamento de Ana Cristina Cesar é uma aula severa em torno disso.

 

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