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A herança das revoluções
Vida & Arte

A herança das revoluções

Em suas treze "cartas às esquerdas", publicadas no livro A Difícil Democracia, Boaventura dos Santos sugere reflexões e estratégias que podem levar ao resgate da força e relevância política da ideologia
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Se o cientista social Boaventura dos Santos baseia a primeira parte de A Difícil Democracia na elaboração de balanços sobre experiências políticas e sociais que ajudaram a definir a cara da segunda metade do século XX e desses primeiros anos do século XXI, encerra seu livro com uma série de provocações sobre o futuro da esquerda.


São treze cartas, escritas entre agosto de 2011 e junho de 2016, que apostam na ideia de recomeço. “Não questiono que haja um futuro para as esquerdas, mas seu futuro não vai ser uma continuação linear de seu passado”, escreve, apontando para a urgência de uma esquerda reflexiva e que se aproxime outra vez da defesa dos direitos humanos mais básicos. Na segunda parte da entrevista concedida a O POVO, Boaventura avalia como nossas heranças políticas ajudam a construir um novo pensamento de democracia.


O POVO - Em seu livro, o senhor revisita o percurso da democracia e ascensão da esquerda ao poder ao longo do século XX. Passa pela Revolução do Cravos, a Revolução Cubana, a Venezuela Chavista etc. Qual será a cara da democracia nos próximos 50 anos?

Boaventura dos Santos - A democracia liberal representativa perdeu a sua luta contra o capitalismo, se é que alguma vez quis lutar. Pensemos na social-democracia europeia depois da Segunda Guerra e na experiência trágica de Allende no Chile. A democracia do futuro será uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa, e esta articulação tem de ser constitutiva dos partidos como forma de lutar contra a corrupção, a opacidade e o clientelismo.

OP - Muitas dessas nações semiperiféricas enfrentaram, no século passado, consideráveis períodos de democracias restritivas e ditadura civil. De que forma essa configuração ajudou a definir nossa democracia dos anos seguintes? O que herdamos - de positivo e de negativo - dessa experiência?

Boaventura - Herdamos uma cultura política autoritária, racista, sexista, homofóbica, a glamourização da riqueza e a banalização de pobreza e da discriminação (quem é pobre é pobre porque não merece outra coisa; o jovem negro é vítima da brutalidade policial porque é bandido; a mulher que é violada provocou a violação devido ao seu comportamento menos recatado).

 

OP - Como o senhor enxergou a eleição de Donald Trump como presidente da nação mais poderosa do planeta? Como, nesse cenário, pode-se continuar pensando em estratégias que rompam com o autoritarismo, com o patrimonialismo e com o não-reconhecimento da diferença?

Boaventura - Só um país muito corrupto, com uma sistema político profundamente anti-democrático, poderia eleger Trump. E ele aí está. Um governo de bilionários e de ex-executivos da Goldman Sachs (grupo financeiro multinacional sediado em Nova York). Os EUA são um império em declínio. Se os EUA fossem uma potência assim tão forte, como explicar a paranoia em que caiu sobre a suposta interferência da Rússia nas eleições? Ou o medo de que a Coreia do Norte lance mísseis que atinjam o País? São os mais poderosos no plano militar e algumas das suas multinacionais são de

fato muito poderosas, mas isso é outro jogo.

 

OP - O senhor fala de “reinventar as esquerdas”. Qual seria o primeiro passo para essa reinvenção? Que papel têm as chamadas “minorias sociais” (movimentos negros, indígenas, LGBTs) nessa revolução necessária?

Boaventura - A reinvenção está no modo de construir as alternativas a partir da base para ajudar hoje as populações excluídas, violentadas, discriminadas. A esquerda tem de ser simultaneamente anti-capitalista, anti-racista e anti-sexista. Mas tem de realizar o seu trabalho nas famílias, nos bairros, nas comunidades, nas favelas. Quem hoje faz este trabalho de base é a direita evangélica. Tem de ser durante muito tempo uma força contra a corrente que não aceita gerir lealmente o capitalismo porque para isso está lá a direita.

Tem de ser totalmente intolerante com a corrupção. (Jáder Santana)


 
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