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"Falta discussão sincera dos blocos com o poder público"
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"Falta discussão sincera dos blocos com o poder público"

Há dez anos "despencando" com o Luxo da Aldeia, o músico Mateus Perdigão defende que a música cearense tem forte veia carnavalesca e afirma temer pela privatização da folia
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Renato Abê
renatoabe@opovo.com.br

 

Mateus Perdigão sabe que a folia também pede seriedade. Há dez anos animando Fortaleza com o bloco Luxo da Aldeia, o músico – que é também bacharel em Ciências Sociais – tocou Terral de Ednardo, “despencou” ao som do Bloco do Susto, mas também teve de se preocupar com banheiros químicos e segurança pública. Ele aprendeu: Carnaval é persistência.


Com trajetória que começou no Benfica, passou pelo Mercado dos Pinhões e agora está na Praça do Ferreira, o Luxo acabou se conectando com muitas das questões que perpassam Fortaleza e vão além da Quarta-feira de Cinzas. Com a bandeira de valorização da música cearense à mão, Mateus defende que o Pré e o Carnaval sejam na rua, no meio do povo e pensado junto com o povo.

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O POVO - Como nasceu seu gosto por Carnaval?

MATEUS PERDIGÃO - O gosto mesmo veio já na fase adulta, mas, desde criança, eu tinha uma relação com o Carnaval. Eu me lembro muito da época do bloco Quem é de Bem Fica. Eu morava pertinho, no Benfica, e eles desciam pela (rua) Waldery Uchôa e faziam percurso indo até o Bar do Chaguinha. Já na adolescência até o começo da faculdade, foi mais aquele esquema de rock. Até que duas coisas me influenciaram: uma foi o meu pai, que organiza o Concentra Mas Não Sai, que eu no começo até achava aquela coisa nada a ver comigo, e a outra foi quando eu comecei a frequentar o Carnaval de Aracati.

OP - O que tinha em Aracati que te “roubou” do rock?

MATEUS - Um ano que teve apresentação do Moraes Moreira e da Elba Ramalho, no Carnaval, com trio elétrico e tudo. Foi aí que eu vi que era possível conciliar música bacana, que eu gostava, com a festa do Carnaval. Eu comecei a todo ano ir para o Aracati, até que as atrações mudaram muito e eu e meu grupo de amigos começamos a ir para o Carnaval de Olinda. Eu passei quatro ou cinco anos indo para Olinda e foi aí que eu vi o impacto do Carnaval na minha vida. A primeira vez que eu fui e vi aquela quantidade de gente, de dia, todo mundo fantasiado, brincando, tocando música para cima e para baixo, aquilo para mim foi muito impactante. Foi mais ou menos no mesmo período que a gente começou a montar o Luxo da Aldeia. Olinda foi o modelo de Carnaval que me contagiou e trouxe esse norte para a gente.

OP - Por que o Luxo nasce com essa ideia de valorizar a música cearense?

MATEUS - Na verdade, já veio uma ideia pronta (risos). Foi o meu pai. Ele já organizava o Concentra Mas Não Sai e, em 2006, a Prefeitura lançou o primeiro edital de fomento aos blocos de Pré-Carnaval. Um dos diferenciais para quem quisesse concorrer era a originalidade, aí meu pai deu a sugestão. Eu, Bruno, Tiago e João Paulo já tínhamos um grupo de samba que se chamava Gebedim (na verdade, isso é um acorde cifrado, o sol bemol diminuto, aí numa história de bar virou o nome do grupo). Ele jogou a ideia, a gente disse “bora”, o projeto foi aprovado e a gente foi pesquisar o repertório, viu que tinha algumas coisas muito antigas que talvez o pessoal não se ligasse. Fomos visitar o (memorialista) Christiano Câmara (1935 - 2016) para pegar algumas sugestões de música, do que era popular no Carnaval de Fortaleza no passado. E pronto, foi quando a gente, em 2007, se apresentou a primeira vez, na rua, sem palco, sem nada.

OP- O Luxo toca de Lauro Maia a Fausto Nilo. A música cearense tem uma forte veia carnavalesca?

MATEUS - Tem muito material para Carnaval. A gente não dá conta de tudo e nem é o nosso propósito dar conta de tudo. É importante ver a contribuição de Lauro Maia e Luiz Assunção, do pessoal do Maracatu, que também influenciou até os artistas na década de 1970, 1980, como é o caso do Ednardo. Tem muito compositor que não é tão conhecido ainda hoje, mas tem um repertório muito bacana de Carnaval, que até já ganhou festivais, como, por exemplo, Paulo Gomes, que a gente toca três ou quatro músicas dele. A mais conhecida é o Velho Palhaço.
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OP- O que falta para que o cearense conheça mais desses compositores?

MATEUS - Divulgação. É nossa proposta divulgar músicas carnavalescas de compositores cearenses, a gente carnavaliza uma ou outra, mas o propósito primeiro é música de Carnaval. O ideal seria que outros blocos replicassem, tocassem esse repertório.

OP - O Luxo não tem gravações, como CD e DVD. O bloco não tem essa vontade?

MATEUS - Vontade tem, a questão é dinheiro mesmo (risos). É um projeto caro. A gente está se organizando para fazer algum registro, porque completou dez anos, o que não é pouca coisa, mas a gente ainda não sabe como vai ser esse registro.

OP - Vocês vendem blusas, fazem eventos fechados ao longo do ano, entre outras ações. O bloco é rentável?

MATEUS - A gente está no limite, na risca, toda vida. Ninguém lucra com o bloco e não é nosso intuito lucrar com o bloco, mas a gente anda bem, até agora não teve nenhum prejuízo. Sempre vendemos camisa para poder conseguir arcar com os custos extras, que são gastos altos com segurança, banheiro químico. Esse ano, a gente conseguiu um apoio da Prefeitura bem maior até porque estamos na Praça do Ferreira. Já conseguimos alguns patrocínios, durante alguns anos, mas patrocínios pequenos comparados aos patrocínios das baterias que saem na Praia de Iracema. Somos um grupo muito reduzido, seis na organização e oito pessoas na banda. E dessas oito, quatro fazem parte da organização. Nós estamos tocando, organizando, assoviando e chupando cana (risos). Hoje com a criação dos polos, de certa forma até concentração de alguns blocos, existe mais tranquilidade, mas ainda é muito difícil a relação entre patrocínios dos blocos aqui em Fortaleza com as instituições privadas que podem patrocinar.

OP- As empresas ainda não entenderam a força do nosso Carnaval?

MATEUS - Não é nem a força, é o modelo, ainda não está muito definido o modelo que se quer de Pré e de Carnaval aqui em Fortaleza. Todo ano existe uma nova discussão de percurso e forma. Ainda falta discutir o que se quer. Falta uma discussão sincera dos blocos com o poder público para entender como a gente vai chamar a iniciativa privada para poder patrocinar a festa. Sei que esse ano a Prefeitura de Fortaleza conseguiu apoio da Ambev, mas falta ainda o diálogo também entre os blocos para pensar o que se quer e investir num diálogo franco com o poder público para dizer como a gente quer fazer a festa, para quem vai ser a festa, de que forma vai ser organizada, para não cair no perigo de toda gestão chegar um conceito diferente e colocar em cima dos blocos.

OP- Há alguma avaliação anual do Ciclo Carnavalesco junto ao poder público?

MATEUS - Nesses dez anos, em três gestões diferentes (da Secretaria da Cultura de Fortaleza), eu não me recordo de nenhuma vez a Secultfor chamar para fazer uma avaliação, chamar os blocos que realizam a festa. Nos últimos anos, a gente até jogou essa ideia, ficou a promessa, mas nunca organizou. É importante (uma avaliação) até para se discutir qual o papel do poder público nesse aspecto.

OP- No seu entendimento, qual é exatamente esse papel?

MATEUS - É principalmente mediar os interesses entre as instituições do poder privado, que potencialmente podem patrocinar, e os interesses entre os blocos. Falta sentar todo mundo numa mesa e discutir quais são os limites, quais são os interesses de cada um, para quem é a festa. A concepção do Luxo da Aldeia é de que o Carnaval é uma festa do povo, para o povo, então, a gente tem esse vínculo muito forte com o público, com a rua, com o local público. Tanto é que nossa trajetória sempre foi assim. Começamos na rua, no Benfica, sempre aliado a um símbolo da Cidade, no caso a gente elegeu o Bar do Chaguinha no começo, um bar histórico. De lá, a gente saiu para o Mercado dos Pinhões e foi para a Praça do Ferreira. A gente sempre teve a preocupação de não só pensar uma festa nossa, a gente entende que um bloco de Carnaval faz parte da dinâmica da Cidade, interfere nas dinâmicas que já existem e esse diálogo é necessário. Por isso, eu acho que o papel do poder público é mediar esses interesses. Esse diálogo ainda está faltando.

OP - Com o surgimento de novos blocos, o perfil do Pré-Carnaval está mudando?

MATEUS - Eu estou percebendo que hoje existe também certa apropriação dos discursos de blocos de Pré-Carnaval. Nesses últimos dois anos, tem uma tendência de muitas empresas, que estão criando blocos, que, no meu entender, na verdade, não são necessariamente blocos. São festas, às vezes gratuitas, às vezes não, e se colocam como blocos de Pré-Carnaval.

OP - Mas o que configura um bloco para você?

MATEUS - Primeira coisa é esse diálogo com a Cidade, com a população. Não é só você fazer uma festa que não tem significado nenhum. É uma festa muitas vezes só objetivando o lucro, sem nenhuma ligação com os ritos e símbolos que são característicos do próprio Carnaval, que é uma festa popular que vem da resistência popular, assim como o São João. O Carnaval tem ritos e significações próprias, repertório próprio também. Hoje eu já vejo certa apropriação e uma tendência do discurso de que tudo é Carnaval. Você toca Madonna numa festa aberta e diz que é Carnaval. Na minha concepção, não. Alguns dizem que eu sou conservador nesse aspecto, mas eu não me coloco como conservador, me coloco mais como alguém que está tentando entender.

OP - Mas a concepção desses ritos não estão em constante mutação?

MATEUS - Claro que toda tradição é criada e pode ser mudada. Não existe essa tradição fechada, hermética que diz que os símbolos são esses e ninguém nunca vai mexer, mas o que eu coloco é o seguinte: a gente está mexendo para onde? Por quê? Com quem? Para onde que vai? Por que a gente está fazendo isso? E aí isso eu estou percebendo no Pré, essa tendência. Cresceu em volume de pessoas que estão na rua, participando e aí estamos sem saber para onde a gente vai. Os próprios blocos estão desarticulados sem saber que rumo quer tomar como Pré-Carnaval e Carnaval de uma cidade. Não adianta mais eu pensar o Luxo como uma festa só de amigo. Eu entendo hoje, depois de dez anos e depois de ouvir muito, eu entendo que o Luxo interfere na dinâmica da Cidade, da mesma forma que os blocos da Praia de Iracema, os blocos de bairro. A gente tem que começar a pensar todo o processo e não pensar só no meu bloco, na minha festa, que é uma tendência que eu vejo de alguns bares, algumas casas de show.

OP - Esses bares e casas de show estariam, então, só se aproveitando do mote do Pré?

MATEUS - É, se aproveitam do mote do Pré para fazer uma festa, que de Carnaval não tem nada. Não é um bloco, não é uma troça, a gente pode até dizer que é um baile, organizado em clubes antigamente, mas é uma apropriação de discurso que eu acho um pouco perigosa, porque você acaba deslegitimando o Carnaval que é público. Eu tenho certo receio à tendência de privatização do Carnaval de Fortaleza.

OP - O que muda nas discussões do Luxo com as apresentações na Praça do Ferreira?

MATEUS - A exposição é bem maior e a responsabilidade aumenta. A gente começa a participar de diálogos com a questão de comportamento das pessoas de respeito aos moradores, de respeitar a rua, o patrimônio público, a gente já está trazendo outras discussões que é a ocupação do Centro. Um bloco de Carnaval que vai hoje se apresentar na Praça do Ferreira suscita uma discussão sobre a ocupação, especialmente à noite e essa mesma discussão aconteceu com o Concentra há dez anos. O tempo que a gente tem de existência, o Concentra tem de Centro. É uma coisa interessante e triste. Ver que aquela discussão que aconteceu há dez anos está se repetindo porque os problemas de ocupação continuam.

OP - Carnaval é festa, mas os problemas da Cidade continuam. Como é para o Luxo lidar com as pessoas em situação de rua que habitam a praça?

MATEUS - Onde a gente for fazer essas festas públicas vai ter que lidar com essas contradições, que vai da alegria do pessoal que está curtindo com essas mazelas que duram o ano todo. No caso da Praça do Ferreira, é bacana ver as pessoas em situação de rua também se divertindo, brincando, curtindo, cantando, gritando com a gente pedindo música. Não é a gente que vai lidar diretamente com isso, mas é importante compreender essa dinâmica até para a gente poder ser posicionar. A gente vê o descaso com o Centro há muito tempo. Vê grandes prédios que poderiam servir de moradia popular virando estacionamento, alguns prédios em situação de infraestrutura muito ruim que poderia ser aproveitado, então, a gente está se apropriando também dessa nova dinâmica e entra nessa questão.

OP - Algumas músicas consideradas clássicas de Carnaval como Maria Sapatão e Cabeleira do Zezé estão sendo problematizadas, por tratarem de questões delicadas de minorias historicamente oprimidas. Você acredita ser importante discutir esses temas?

MATEUS - Problematizar é interessante. É necessário discutir, mas discutir com propriedade, entender em que contexto aquela música foi escrita. A gente mesmo já acabou retirando uma das músicas que é a música Ai, ai, brotinho, do Humberto Teixeira, Luiz Gonzaga. A gente achou que não estava tocando bem e tirou do repertório, aí depois a gente foi ver que essa música poderia não estar muito apropriada em relação àquilo que a gente se propõe. Dentro do bloco a gente traz a discussão do respeito ao gênero, respeito às pessoas, respeito às liberdades individuais e coletivas e nessa música a gente acabou tirando porque poderia soar machista. Eu até fiquei atrás de ir ver a história do trás dessa música até para não ficar problematizando uma coisa. A problematização de músicas que podem trazer uma conotação opressora tem de ser feita mesmo. A gente não pode fugir do debate.

OP- Você falou a importância de Aracati para seu amor por Carnaval. Esse ano, assim como em 2016, o Governo do Estado cortou patrocínio para alguns municípios. Como você avalia esses cortes?

MATEUS - É um tema delicado que precisa ser discutido, tem muita cidade que uma renda que consegue no Carnaval sustenta a cidade por alguns meses durante o ano. O ideal seria avaliar cada caso de cada município. Existe, e isso é histórico, uma demonização do Carnaval. Aquela coisa: “Ah, não, Carnaval é só brincadeira, putaria, então se for para tirar alguma coisa, tira do Carnaval’. Existe um aspecto moralista muito forte nessa situação e do ponto de vista do poder público, seria interessante avaliar cada caso. Tem também a questão de rubrica também, não sei se é o caso do Governo do Estado este ano, mas você tem rubricas diferentes para cada área. Um município desse que recebe dinheiro para o Carnaval teoricamente tem que gastar com Carnaval, se não vem esse dinheiro para o Carnaval, não vai para outro canto. Independente disso ou não, uma questão que vejo como grave é isso do Carnaval sempre ficar em segundo plano, não é vista como cultura, como produção de cultura e isso não só no momento da festa, com essa falta de estrutura, mas também ao longo do ano.

 

A BANDA

O LUXO. ENQUANTO MATEUS TOCA GUITARRA, BRUNO PERDIGÃO TOCA CAVAQUINHO E GUITARRA BAIANA, TIAGO PORTO VAI NA PERCUSSÃO, JOÃO PAULO É VOCALISTA

 

DESPENCA

ATÉ O CHÃO. O VERBO “DESPENCAR” É A CARA DO BLOCO, QUE SEMPRE, AO TOCAR A MÚSICA BLOCO DO SUSTO, PEDE PARA O PÚBLICO AGACHAR E LEVANTAR NUMA EXPLOSÃO DE FESTA

 

DIA DO MUGANGO

FANTASIA. O BLOCO, ASSIM COMO O “FALECIDO” SANATÓRIO GERAL, INCENTIVA O PÚBLICO A IR FANTASIADO PARA AS RUAS. O ÚLTIMO DIA DO PRÉ É O OFICIAL PARA O “MUNGANGO”

 

PERFIL

Mateus Perdigão de Oliveira, 33 anos, cresceu no Benfica até os 15 anos, quando mudou para a Aldeota – sem, entretanto, nunca ter deixado de ter o Benfica como casa. Cursou Ciências Sociais na Universidade Estadual do Ceará (Uece) e estudou piano clássico no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno por dez anos. Toca também guitarra e violão. É filho de Marcus Vinicius de Oliveira, o Marvioli, que há décadas movimenta o Pré na Capital. Ele é irmão do Bruno, que também compõe o bloco, e filho de Sônia Perdigão, que “não perde uma apresentação” do Luxo.


PERGUNTA DO LEITOR


Felipe Araújo, jornalista, músico e folião


FELIPE - O grande barato do Luxo é devolver pra boca do povo o repertório cearense de grandes compositores. Mas, em 10 anos de bloco, apenas Fausto Nilo e Amelinha subiram ao palco com o Luxo. Nem Ednardo nem Fagner parecem ter se interessado em participar da festa. O que você acha?

MATEUS - O Fausto é super acessível, ele sempre apoiou o Luxo. Com Amelinha, foi uma experiência muito boa se apresentar com ela, que nos deixou bem à vontade. Com o Ednardo, este mês a irmã dele veio falar com a gente, mas não temos um contato direto com ele, que mora fora, o contato é um pouco mais difícil. Com o Fagner, a gente teve um contato com ele, muito rápido e por acaso. Com ele é um pouco mais difícil, ele tem uma agenda nacional. Na verdade, a gente não está fazendo isso para agradar aos compositores, a gente está na verdade tentando homenageá-los. Se tiverem interesse de participar, massa. Se não, a gente entende, porque o importante é fazer a homenagem.

 

O POVO Online

 

Veja vídeo com Mateus Perdigão em:

www.opovo.com.br/videos

 

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