Não esqueçamos. Imensa foi a reação das elites cafeeiras contra a abolição da escravatura. Quando selada, os afrodescendentes foram atirados à própria
sorte, sem direitos de cidadania, sem indenização, sem-terra, sem bens. Nessa condição, foram obrigados a servir aos mesmos senhores a troco do mísero pão, enquanto eram condenados à miséria nas favelas e os tugúrios da periferia. A quartelada da República é um arranjo de cima para adequá-la aos novos ditames mercantis e políticos da Europa. A sua classe dominante vai lutar durante todo o século XX para manter o povo brasileiro na sujeição, na desgraça e no analfabetismo.
Entretanto, houve um tempo em que este país acreditou em si. De meados da década de 1950 para o início da década de 1960, eclodiram iniciativas que ousaram uma arquitetura nova, um cinema novo, uma bossa nova, um teatro novo, uma literatura de grande vitalidade. Encontro de povos e culturas, herdeiro de mundos, o Brasil foi visto, naquele tempo, como uma civilização nova. A euforia pouco durou. Não precisamos dizer o que representou o golpe de 1964, com a prisão e o exílio da melhor inteligência brasileira, sob o signo da tortura e das trevas e o jugo dos interesses norte-americanos, durante mais de 20 anos.
Após breve e conturbado período de democracia, com algumas conquistas sociais, temos agora um governo sem legitimidade, com a frágil permanência negociada a peso de ouro (sustentado pelo Grande Mercado), que trata de acabar com o que resta do Brasil. Vivemos o tempo do regresso da sífilis, da peste bubônica, da tuberculose, da febre amarela, da dengue-zika-chikungunya e de todas as misérias epidêmicas e sociais.
Milhões voltaram ao patamar de miséria absoluta e o trabalho precarizado e escravo aumenta, notadamente entre mulheres, favelados e crianças. Vivemos um agora ainda mais pobre e agonizante país que volta a ser uma imensa senzala e uma colônia agrícola dos grandes impérios. A violência, urbana e rural, transforma o país em um aberto campo de batalha, com mais vítimas anuais do que as piores guerras contemporâneas. Os negros, as mulheres e os jovens são as suas maiores vítimas. Aumentam as indústrias do medo, da segurança e dos presídios. Crescem os fascismos e crimes de todo tipo – tudo já adquirindo ares de “normalidade”.
Os países nascem e morrem, são inventados e desinventados. Tem época em que uma nação é estripada, material e simbolicamente, e os seus pedaços são distribuídos aos abutres. É possível que as partes do corpo despedaçados ainda tremam e pulsem a vida e, quem sabe, voltem a se reunir novamente em um só corpo (feito o corpo de Osíris) e possa a nação renascer.
Sim, uma nação pode ressurgir das trevas, mas estará para sempre marcada pela violência e pela miséria de sua história recuada e recente.
Rosemberg Cariry
ar.moura@uol.com.brCineasta e escritor