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Isabel Costa: "Aulas entusiasmadas"
Opinião

Isabel Costa: "Aulas entusiasmadas"

Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Isabel Costa

isabelcosta@opovo.com.br

Jornalista do O POVO


Era 2006 e eu cursava o segundo ano do ensino médio. A professora de língua portuguesa, Ana Paula, entrou na sala com um micro system. Apertou o botão e os tons de Divina Comédia Humana encheram tudo. Nós ouvimos “Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol” dez vezes. Ana fez o CD voltar até que todos escutassem. Ao fim, a sala olhava para a professora e para o micro system. Metade achando a situação engraçada e a outra metade com cara de “e daí?”.


Ana Paula perguntou como era aguardar o jogador chutar enquanto os amigos de time contavam com a vitória. “Eita, é difícil”, responderam os meninos lá do fundo, talvez pensando no futebol do recreio. Ela falou sobre literatura, música e sentimentos que só a arte é capaz de traduzir. Falou de Belchior que, naquele ano, ainda não havia partido para o autoexílio. Busquei discos que explicassem quem era o cantor. Amei. Quis a sessão de cinema das cinco, virei anjo rebelde e gritei que era garota latino-americana ao completar 25 anos.


Com um verso, Ana Paula abriu um mundo. No domingo, 30 de abril, quando a morte do Belchior foi confirmada, eu me lembrei da professora e da aula. E refleti sobre o quão fui sortuda por ter uma formação sólida em letras e artes. Isso aconteceu graças aos esforços de docentes entusiasmados e corajosos. Para apresentar aquele verso em 2006, ela precisou de micro system, de CD, do tempo para copiar a letra e da coragem para enfrentar a turma e oferecer algo “diferente”.


Por uma coisa ou outra, as aulas entusiasmadas não são a regra. São pontuais. A maioria dos livros didáticos não favorece o trabalho com música e outras linguagens artísticas. E, muitas vezes e infelizmente, quando o professor resolve inserir signos artísticos, as pessoas pensam que ele quer “enrolar o tempo”. Eu só lamento. E espero que nosso ensino médio consiga se reinventar em algum momento, que os professores tenham mais entusiasmo e mais espaço para trabalhar, que a comunidade escolar colabore e que os alunos se envolvam.

 

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