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Iana Soares: "Eu tenho medo e já aconteceu"
Opinião

Iana Soares: "Eu tenho medo e já aconteceu"

Edição Impressa
Tipo Notícia Por

Iana Soares


ianasoares@opovo.com.br

Jornalista do O POVO


Se eu te dissesse que teria de ficar pelo menos 24 horas trancada em um quarto de chumbo, sem falar com ninguém, encostar em ninguém, tomando 15 banhos, bebendo cinco litros de água (no mínimo) e chupando limão, você se assustaria daquele jeito que me faz querer dizer rapidamente que tudo fica bem e passa. Me perguntaria se um banho de mar seria bem-vindo e eu teria de explicar que não posso, porque tenho de evitar o iodo das coisas e do mundo para que tudo aconteça conforme o planejado. Você se apegaria ao detalhe e acharia graça da parte do limão: sorriso no canto da boca e um jeito de bagunçar meu cabelo que me devolveria o riso. Eu repetiria que tudo vai dar certo, porque a gente acha que, quando repete, em alguma medida algo acontece, embora não seja assim.

 

 

Antigamente, se tivesse sede, no meio da madrugada, tratava de enganar a garganta. Aquilo não era secura, ia passar. Até conseguia chegar à cozinha e ser salva pela luz da geladeira, mas quem podia garantir que chegaria viva no trajeto da volta? Eu tinha medo e já aconteceu, eu tenho medo e ainda está por vir. Comecei a desenhar meu pequeno mapa do tempo e ainda não conhecia nem chorava o Belchior. Quando o medo se fez presente, ele era um corredor comprido, uma falta de fôlego, uma novidade. Virou visita.

 

 

Eu diria tudo com pressa, com a certeza de que, se a palavra cria um mundo, o silêncio ajuda a transformá-lo. Poderíamos inventar um jogo para os dias em que o medo voltasse. Você me diria para ter calma, se já deu certo uma vez, vai dar de novo. Desviaria o assunto e diria que essa conversa só começou porque um amigo escreveu o verso na linha do tempo. Não é bem amigo, você me alertaria e te daria razão. Já o perdi duas vezes no meio da multidão e prometi não fazê-lo uma terceira, mas uma vida é pouco para tantos encontros. Bobagens, minha filha, bobagens.

 

 

Incorporei “radiotividade” ao meu pequeno dicionário do medo. Depois de chafurdar na etimologia, resolvi pensar em como é incrível algo muito ruim se transformar em uma coisa boa. Você me ajudou: se pudesse me ver naquele quarto, enxergaria os pontos luminosos, as constelações que existiriam em mim. Eu seria uma via láctea imensa. Ainda estou com medo, mas, depois de um texto inteiro, posso olhar para o céu e sorrir.

 

 

 

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