Voltam as borboletas, os pássaros, tudo pulsa. Bem-vindas as “Águas de março” do relicário de Tom Jobim, trazendo “promessas de vida”. “Planeta Água”, de Guilherme Arantes, empresta um tom de correnteza tranquila, desfazendo e fazendo a natureza em seu movimento. Essas águas ansiosamente aguardadas, saudadas quando chegam revivem os riachos, correm pelos cantos das vias. Quando o céu acinzentado prenuncia sua chegada, o fim de um longo período seco é festejado.
Fortaleza fica mais bonita quando das primeiras chuvas. Água fonte de festa e alegria também gera o medo, provoca temor. Rapidamente os rios da Cidade se avolumam e devolvem as áreas de risco, há muito ausentes da mídia. Inundações, asfalto destruído, congestionamentos, prejuízos. Fortaleza mostra-se despreparada para essa fonte de encantamento de seu povo. As obras viárias pretensamente construídas para resolver problemas não atendem as expectativas. Túneis inundados, veículos carregados pela força das águas. Na periferia, o lixo acumulado é carregado pelas torrentes, convertendo-se em vetores de doenças.
As águas de março criam paisagens desoladoras. Nesse período cenas reveladoras da injustiça social e ambiental mostram uma cidade que ultrapassa os limites dos cartões-postais. A cidade sofisticada da publicidade não dá as caras para aquelas bandas onde reside a maioria da população. As águas de março chegam e contraditoriamente trazem desespero para os adultos das áreas desprovidas de infraestrutura e oferecem opção de lazer para a criançada carente. Desconhecendo os efeitos maléficos das águas misturadas ao lixo e às valas e aos esgotos a céu aberto, elas fazem a festa. Nos noticiários relatos de residências inundadas, móveis perdidos, colchões e sofás molhados, comprometimento das instalações elétricas, um drama que parece não mais sensibilizar as autoridades.
As cheias e inundações foram naturalizadas. Tem-se a impressão de que a mídia passa para a sociedade a ideia de que cheias, inundações, perdas e prejuízos se inseriram no calendário de eventos da Cidade. É um absurdo!
As águas de março chegam sempre. Já era tempo de aprender com elas. Não adianta mais “vaiar o sol”. As chuvas do começo do ano trazem uma pedagogia. As águas desenham caminhos e percursos, acumulam-se em determinados locais. Na medida em que a Cidade despreza os mapas traçados pelas águas, maior o sofrimento de seu povo.
José Borzacchiello da Silva
borzajose@gmail.comGeógrafo e professor emérito da UFC