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André Bloc: Quanto vale uma vida
Opinião

André Bloc: Quanto vale uma vida

Edição Impressa
Tipo Notícia Por

André Bloc

andrebloc@opovo.com.br

Jornalista do O POVO


“A ‘mundiça’ tá de calcinha e tudo!”


Nunca tinha ouvido falar de Dandara dos Santos, que morreu aos 42 anos. Não ouviria falar dela quando nasceu, desconfortável com o corpo que o destino lhe deu. Não a conheci quando ela se assumiu algo que a sociedade apedreja. Não a encontraria circulando no meu conforto pequeno-burguês de quem conhece estabilidade. Eu nem mesmo descobri quem ela era quando a moça morreu, sozinha, no dia 15 de fevereiro.


“Suba, suba. Não vai subir não?!”


Dandara estava tão à margem da sociedade que morreu e seguiu invisível. Seu nome só começou a ecoar após duas semanas, quando um vídeo circulou nas redes sociais e escancarou a barbaridade com que Dandara e suas semelhantes lidam diariamente. Eu não vi o vídeo. Conheço, porém, as frases gritadas, o ódio escancarado. Li a descrição do ocorrido e isso me lembrou de outro vídeo, por mim visto anos atrás.


“Seu viado ‘fêi’”


A sequência juntava uma série de homens postos em círculo. No centro, assustado, um rato corria de um lado ao outro. Acuado, o animal debilmente tentava uma brecha para correr à liberdade. Até que, em um ápice abrupto, um dos algozes desfere uma paulada mortal no animal indefeso. Qual a diferença de Dandara para o rato?


Travestis são párias entre párias. Mesmo dentre os LGBTQs, elas pouco têm voz. Sem emprego, sem direito à dignidade, morrem indigentes, frequentemente amputadas do seio familiar. Dandara não viralizou, não ganhou a merecida manchete de sábado, ao morrer. Quando foi assassinada, ninguém notou. Ela só foi descoberta depois do vídeo, depois que os algozes, na arrogância de quem acredita ter terminado uma dedetização, deixaram vazar a prova do próprio crime.


Dandara merece revolta. Merece passeatas, choros, luto. Se, em morte, ela foi tratada como praga, em memória ela tem de ser Dandara. Ela, que é uma ponta de iceberg. Uma dentre centenas de vítimas anuais do país líder mundial em crimes de ódio contra LGBTQs. E, não fosse a repercussão, a morte dela seria mais um ato transfóbico ignorado pelo poder público. Dandara não vira mártir pela morte brutal, feia, assustadora. Vira porque o vídeo escancara como a sociedade trata pessoas como ela.

 

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