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Dois dedos de prosa com Ana Carolina Cáceres
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Dois dedos de prosa com Ana Carolina Cáceres

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Ana Carolina Cáceres tem 25 anos, é natural de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, formada em jornalismo pela Universidade Católica Dom Bosco e, atualmente, graduanda em letras pela mesma universidade. Ela está de passagem por Fortaleza para participar do Ato Nacional em Defesa da Vida, marcado para este domingo, às 16 horas, na Praça Portugal.

A jornalista ficou conhecida nacionalmente como a porta-voz dos que convivem com microcefalia quando, em fevereiro de 2016, um texto de sua autoria sobre a própria experiência com a síndrome – congênita, em seu caso – foi publicado pela BBC do Brasil. A publicação veio à época em que o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a discutir a possibilidade de ampliar judicialmente o aborto para mulheres infectadas pelo zika vírus, visto a quantidade de casos de bebês nascidos com microcefalia associada ao vírus.

Contrária à proposta, que ainda será julgada no STF, Ana Carolina Cáceres conta ao O POVO.dom como é crescer com microcefalia e de que forma ela pretende chamar a atenção da população para o assunto.

O POVO - Quando e como foi que você tomou consciência de que tem microcefalia?

Ana Carolina Cáceres - Meus pais sempre me falaram: “Filha, ‘cê num é igual às outras crianças, ‘cê tem que tomar cuidado porque ‘cê tem um problema que, se bater (a cabeça em algum lugar) pode vir a dar um problema maior…”. Eles falavam dessa forma. A palavra microcefalia veio quando eu tinha 12, 13 anos, um pouquinho tarde, até porque, se eles me falassem antes, eu não ia entender o que era. A partir do momento em que me falaram, procurei saber por conta própria o que vinha a ser microcefalia. E tudo o que eu achava era um pouco assustador. Não condizia com a realidade que eu vivia. Então, até hoje eu não sei exatamente o que é, se é o cérebro num formato pequeno ou a cabeça toda em formato pequeno, porque cada caso é um caso. Tem criança que nasce com crânio normal e o cérebro pequeno e tem microcefalia e tem outra que o crânio nasce, no meu caso, todo fechado, e o cérebro menor.

OP - Qual, exatamente, é o seu caso?

Ana Carolina
- O meu grau, graças a Deus, foi mais leve. O cérebro não estava deformado e não tive lesões quanto à parte intelectual, desenvolvimento, não tive esse tipo de sequela que geralmente se apresenta em casos mais graves de microcefalia.

OP - Como a microcefalia afetou suas relações pessoais enquanto criança e adolescente e como ela afeta, hoje, você já adulta?

Ana Carolina - Minhas relações nunca foram tão afetadas, tanto que tenho amigas desde que tenho, 11, 12 anos, que foi quando eu, por conta própria, comecei a ter amizade. Tem uma amiga minha que a gente vira e mexe sai, que tenho amizade com ela já vai fazer 20 anos, então, é uma amizade antiga. E outras que comecei na faculdade e até hoje converso. Microcefalia nunca foi impedimento pra eu chegar, conversar. As pessoas quando me veem, logo, de cara, perguntam da cicatriz (da cirurgia), porque ela é bem aparente. Aí eu explico e as pessoas olham, fazem uma cara, porque o nome assusta, né? Micro, pequeno, cefalia. Tem esse susto por causa do nome, também.

OP - No ano passado, quando os então recentes casos de microcefalia associados ao zika vírus encheram os noticiários, seu texto sobre a própria experiência com a microcefalia foi publicado pela BBC do Brasil e bastante compartilhado. Isso a surpreendeu?

Ana Carolina - Sou jornalista, então um dos meus hobbies é escrever. Mas eu não esperava que um texto meu chegaria ao ponto de virar matéria num veículo como a BBC. Me surpreendeu muito. Quando eu via veículos (jornalísticos) que eu acompanhava só no dia a dia, e eu me via nesses veículos, eu dizia: “gente, olha onde eu tô! O que eu tô fazendo aqui?”. Aí eu ficava meio perdida e ao mesmo tempo, não sei se orgulhosa, satisfeita… mas foi uma coisa bem esquisita.

OP - Você acompanhou a repercussão?

Ana Carolina - Pude acompanhar em casa, pela internet. Fora que lá em casa a gente desligava um telefone e tocava outro. A gente teve dois meses intensos de atender jornalistas e jornalistas não só do Brasil, mas do mundo todo. Teve gente de Portugal que ligava, a ligação péssima, mas a gente fazia a entrevista mesmo assim. Entrei ao vivo em rádio da Argentina...

OP - Foi nesse momento que você percebeu que poderia potencializar a discussão sobre a microcefalia, do ponto de vista de quem tem a síndrome?

Ana Carolina - Eu percebi que a gente poderia potencializar essa discussão a partir do momento em que eu vi que as crianças estavam vindo por causa do zika (vírus). Que tinha uma geração vindo, não era mais como antes, na minha época, em que a cada dez mil nascimentos, uma criança nascia com microcefalia. Hoje, é uma geração inteira. Então, essa discussão veio à tona e foi uma oportunidade grandiosa porque uma parcela da sociedade existia antes do zika e agora começava a ter essas crianças e que ninguém sabia o que era. Tanto que quando começou a surgir o pessoal ficou: “Ah, mas o que é microcefalia?”. Os jornalistas não sabiam dizer, eu via muita informação errada. Mas não era nem culpa deles, porque não tinha essa informação. Agora é que até os próprios médicos estão correndo atrás de casos pra ver as várias formas como ela se apresenta. Então, o ato que a gente vai ter na Praça Portugal é uma boa oportunidade de mostrar pras pessoas o quanto o STF (Supremo Tribunal Federal) vai fazer este país perder se for a favor do aborto nos casos dessas crianças. Porque vai perder até cientificamente falando a oportunidade de estudar uma coisa rara, ser um dos pioneiros a conhecer a microcefalia como ela é, de fato, não só por boca a boca. Então, a importância até, do ato, pra que a população tenha consciência. Hoje a gente vive na sociedade do descartável e a educação, o conhecimento, não são dados pra você pensar, são impostos. Esses atos públicos ajudam a população a pensar.

OP - Mesmo que não haja, ainda, uma rede de apoio bem estruturada no Brasil para atender às mães e bebês com microcefalia, você defende o nascimento. Por quê?

Ana Carolina
- Porque a gente tem o artigo 6º da Constituição Federal que diz o seguinte: é direito social a proteção à maternidade e à infância e a assistência ao desamparado. Ao que me consta, maternidade e infância caminham juntas. Você só tem infância se nasce, só tem maternidade se a mãe deixa nascer. Sendo assim, a gente está tendo uma lei inconstitucional.

OP - Você acredita que a sua história de convivência com a microcefalia é exceção?

Ana Carolina - Em Campo Grande (MS), posso citar uns cinco (casos) de pessoas que têm microcefalia e que têm estudo, trabalham, viajam sozinhas. Tem duas meninas de uma mesma mulher, que nasceram com microcefalia, e as duas são campeãs olímpicas na escola. Então, eu sou exceção, sim, porque o meu caso é muito raro de acontecer, é por genética, não é que nem o delas, que teve uma causa associada. O meu é raro por causa disso, mas não é raro no que condiz ao respeito de a pessoa com microcefalia poder ter uma vida normal. Isso a gente só descobre se deixar nascer.

OP - Você passou por muitas cirurgias e por alguns tratamentos para melhorar a sua qualidade de vida. O que esses momentos representaram para você?

Ana Carolina - Fiz sete cirurgias.. Minha família relata que a mais difícil foi a primeira, porque foi a mais longa, demorou de 12 a 13 horas. Nessa cirurgia foi feita a retirada de parte do crânio para que o cérebro pudesse se desenvolver e também correções na face porque eu tinha desvio nasal que impedia que eu respirasse. Eu perdi muito sangue e também tive duas paradas cardíacas. Quase fui dessa pra melhor duas vezes. E foi a cirurgia mais angustiante porque era tentativa, a gente não tinha certeza se ia dar certo. Podia fazer a cirurgia e eu simplesmente não andar, não falar, não enxergar. Porque o médico deixou claro: “é uma tentativa, vamos ver se vai dar certo, vamos acompanhar”. E foi o que aconteceu. O médico que fez todas as sete cirurgias me acompanhou até os 14 anos. Aos 14, ele me deu “alta”, pelo menos das cirurgias e do tratamento com os remédios. A única recomendação que deixou foi a seguinte: “a partir de agora, você vai ao neurocirurgião uma vez ao ano”. Eu faço esse acompanhamento pra ver como está, ainda tenho esse cuidado. Bem mais leve, mais neutro do que eu tinha até os 14 anos, mas tenho.

OP - É só esse o tratamento que você faz?

Ana Carolina - Só esse. Medicamento eu não tomo mais, tomei até os 12 pras convulsões. Comecei a ter convulsões aos dois anos de idade, a primeira na mesa da fisioterapeuta e a última em torno dos 8, 9 anos. Convulsão, aliás, é uma característica da microcefalia. Alguns têm mais, outros têm menos e esses remédios são tão comuns que a rede pública de saúde é capaz de dar. São remédios que não são contínuos, você toma até certo tempo e para. Tomei até os 12 pra controlar as convulsões. Eles não acabam, controlam. Você ainda tem as convulsões, mas não tão forte como teria sem eles.

OP - Você, hoje, já não sofre mais nenhuma consequência?

Ana Carolina - Eu tenho uma leve, nada que me impossibilite fazer alguma coisa, sequela motora, um pouquinho na dicção e na lógica. Matérias por exemplo como matemática e física, eu tive uma dificuldade bem além da normal pra conseguir assimilar. Mas ainda assim eu me esforçava um pouquinho mais e conseguia passar, tanto que cheguei à universidade.

OP - O que significa, para você, ser jornalista com microcefalia?

Ana Carolina - Primeiro, é uma conquista. Outra: eu posso ser a voz dessas crianças todas que ninguém até então sabia que existia. Posso ser o espelho delas. Elas estão à parte da sociedade, num lado que não se conhecia, e aí chegou uma pessoa e falou: “ei, a gente existe. E não é de hoje. Não é do zika. A gente existe há tempos, então, vamos acordar. Se essas crianças estão vindo hoje e vocês não estão conseguindo lidar, como vocês conseguiram lidar com as outras? Quer dizer, então, que as outras estão desamparadas igualmente. Então, vamos ouvir todo mundo”. Essa é a minha visão de ser jornalista e ter uma síndrome tão rara, como a microcefalia.

 

Por Luana Severo
Repórter do Núcleo de Cotidiano 

Fotógrafo: Fábio Lima

 

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Serviço
Ato Nacional em Defesa da Vida
Quando: neste domingo, 22, às 16 horas
Onde: Praça Portugal 

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