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Uma festa para o trovador Cearense
Cotidiano

Uma festa para o trovador Cearense

Milhares de fãs do cantor Belchior transformaram o velório do artista numa festividade. Ao modo de suas composições, o coração selvagem foi a senha para que a tristeza fosse afastada e no palco da despedida restasse apenas a força poética e política de suas músicas
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Feito canção, o velório de Belchior virou festa. Morto na madrugada do último domingo, no extremo sul do País, o artista cearense, cujo sepultamento será hoje, no Cemitério Parque da Paz, às 9 horas, fez a derradeira travessia: agora não apenas geográfica, mas de corpo e alma.
[SAIBAMAIS] 

Foi acompanhado nesse périplo por seis mil pessoas, que ocuparam o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura desde as primeiras horas de uma segunda-feira de cidade vazia, dia em que o equipamento normalmente fecha. Mas não ontem.
 

Nessa última festa para o trovador, o gesto de despedida foi inusual: bares cheios, música em toda parte, garrafas de vinho abertas e nada de silêncio misericordioso.
 

O coração selvagem pedia passagem, e os fãs ofereceram o que sua própria música lhes havia ensinado: amor e coragem.
Foi o que levou José Edson, 63 anos, ao encontro tardio com o ídolo. 

 

Conhecido como “Belchior do Dragão”, menos pela voz que pela semelhança física (bigodes fartos e ar pesaroso), o vendedor chegou cedo. Ficou por ali mastigando a tristeza debaixo da cúpula do planetário. Morador do Poço da Draga, queria celebrá-lo, mas não conseguia aceitar a partida. Até que admitiu: talvez cantasse, algo que nunca lhe tinha passado pela
cabeça até então.
 

“Quem sabe a partir de agora não faço alguma coisa pra compensar a ausência dele”, disse. Começou imediatamente: foi até a fila que havia se formado para velar o corpo. Parou. Sorriu. Fez fotos, foi abraçado e beijado. Alguém achou que fosse o Belchior redivivo. Não disse um só verso, mas estava feliz.
 

Assim como Fausto Nilo, amigo de Belchior havia quase seis décadas, quando  o conheceu no Liceu do Ceará. O compositor e arquiteto também se desconsolou de imediato, mas logo cuidou em reavivar a última vez em que se falaram, quase dez anos atrás.
 

“Foi aqui mesmo, no Dragão do Mar. Eu tinha acabado de fazer um show, e ele estava ali, num banco da praça”, e aponta para o longe. Para ele, Belchior ainda estava lá. Era mais que uma lembrança na parede da memória.
 

O mesmo se deu com Emerson Damasceno, 46. Cadeirante, pôs-se em marcha até o Dragão para ver o cantor, de quem sentia saudade, mas também uma profunda sensação de agradecimento. “Belchior era atemporal.  Não morre”, resumiu. 


O sobralense Rondinelly Mota, 30, foi além: como se para se convencer de que não era inverdade a notícia da morte, entrou na fila duas vezes para se despedir. Feito isso, foi comemorar com a namorada, Lívia Cunha Ribeiro. Tomaram um porre. “Belchior é nossa trilha amorosa”, contou. “Ele ensinou que a felicidade não precisa de nada, só de acontecer.”
E foram beber mais.
 

Último na fila às 21 horas, Jeymson Xavier, 32, sintetizou o transe coletivo: “Não há tristeza. Belchior é juventude, força, e é isso que queremos sentir”. De braço dado com o namorado, Aline Miranda, 34, completou: “Ele não é antigo. É contemporâneo”.
 

E então repetiu a frase que mais se ouviu numa cerimônia que, como a obra e a vida do cantor, foi toda ao avesso: 

“Sempre desobedecer, nunca reverenciar”. Atrás do casal, outros já se punham a andar. Eles não eram mais
os últimos.

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