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Guerra fratricida

2017-07-08 17:00:00

A Venezuela chegou a um grau extremo de divisão interna, dificilmente reversível. Hoje, o Brasil não tem mais liderança para tentar uma articulação apaziguadora, infelizmente. Já fará muito se não embarcar numa eventual intervenção americana. Ora, cabe, exclusivamente, ao povo venezuelano resolver seus problemas internos, sem ingerências externas. Resta torcer para que a situação caótica não transborde as fronteiras da Venezuela. Se os americanos intervierem, a contaminação provavelmente se espalhará, pois, a América do Sul é avessa à presença de tropas estrangeiras, sobretudo americanas, em seu território. Se os gringos puserem os pés na Amazônia, dificilmente vão querer sair de lá, depois. E o Brasil terá sua soberania comprometida.


DOIS TONTOS

Os dois lados perderam a cabeça por completo. O ataque ao edifício da Suprema Corte, por um helicóptero pilotado por um antichavista, e a invasão do Parlamento por chavistas, com espancamento de deputados, são episódios inaceitáveis. A oposição, que fala tanto em democracia, é composta pelos mesmos segmentos que deram um golpe de Estado em 2002, depondo Hugo Chávez e instaurando uma ditadura de extrema-direita que durou 47 horas, até a Guarda Nacional, apoiada pelo povo, resgatar o presidente e botar os golpistas para correr. Desta vez, todos perderão, pois, a guerra civil é o mais cruel dos conflitos.

 

CONSTITUIÇÃO

Não precisava ser assim. A Venezuela tem uma das constituições mais democráticas do mundo. Ali estão previstos mecanismos para resolver qualquer impasse institucional. O texto não só foi amplamente discutido pela população, como foi referendado, depois, pelos eleitores. Aliás, tudo o que Chávez fez foi através do voto. Ele mesmo teve o próprio mandato submetido a referendo revogatório (recall) e venceu. O grande erro dele - e de seu sucessor Maduro - foi insistir na implantação de um modelo socioeconômico voltado para a ruptura imediata com o capitalismo, nos moldes do chamado “socialismo real”. Ora, esse modelo foi reprovado historicamente, não porque seu ideário estratégico (uma sociedade sem explorados e exploradores) estivesse errado, mas, pelo fato de isso não ser possível enquanto o mundo for regido por relações hegemonicamente capitalistas. A queda da URSS e do bloco socialista foi uma prova disso.

 

VOLUNTARISMO

Marx sempre apontou que o socialismo seria resultante do esgotamento total do capitalismo. Deduz-se disso que o próprio sistema irá travar algum dia, e por imposição da realidade, aos poucos estabelecendo mecanismos de racionalização da produção e de distribuição paulatina da riqueza por imperativo de sobrevivência da humanidade. Isso pressupõe uma gestação de longuíssima duração, até o parto ser concluído. Mas, tem que ser um processo mundial: antecipá-lo e restringi-lo a um país específico é voluntarismo, e sempre resulta em violência e fracasso, enquanto o mundo for hegemonicamente capitalista e regido pelas regras deste. 

 

HERESIA

Tomar o poder nessas circunstâncias não permite mantê-lo. Os que tentaram tiveram de apelar (sem sucesso) para um regime de força para não serem desalojados. Com isso romperam o compromisso genético do socialismo originário para com a democracia. Por não terem tido a paciência de aguardar pelos passos da História e tentado um “atalho”, as forças lenino/estalinistas terminaram por gerar ditaduras totalitárias que logo perderam o vigor das ideias e o dinamismo econômico inicial, até emperrarem por completo e caírem como frutos podres. Pode-se dizer que o voluntarismo de Lênin e a tirania de Stalin foram, na verdade, uma heresia, do ponto de vista do marxismo originário.

CONSENSO

Então, as forças progressistas devem cruzar os braços e aceitar as desigualdades e injustiças sociais? Não, o papel da esquerda, nesse longo intervalo histórico que terá pela frente (até o capitalismo parir por completo o socialismo), é trabalhar para corrigir as desigualdades, eliminar a pobreza e a fome, ampliar os direitos e garantias individuais e coletivos, incentivar a cultura da paz, criar uma renda básica universal, aprofundar a democracia, tornando-a direta, lutar pelos direitos humanos e contra as discriminações de toda ordem, etc. Até que se possa, um dia, chegar - por consenso - à sociedade sem exploradores e explorados, almejada pela humanidade desde que surgiram as classes sociais e o Estado. Estes dois desaparecerão, ao final do processo, pois terão se tornado caducos àquela altura.

 

ALTERNÂNCIA

Ora, o equívoco do chavismo foi seguir o roteiro fracassado do socialismo burocrático, ao querer, romper, de imediato, com o capitalismo, num mundo ainda dominado pela lógica e o poder deste. Acertou, quando criou instituições e mecanismos democráticos e contemporâneos, sintonizando-se com o mundo conectado da Internet, que enseja o cidadão a participar do poder decisório, diretamente, e não mais depender de intermediários. Mas, errou ao não aceitar a alternância de poder, uma das pilastras da democracia, contrariando o compromisso do socialismo originário para com a democracia.

Adriano Nogueira

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