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O lugar inventado
Foto de Socorro Acioli
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

O lugar inventado


Algumas pessoas descobrem, em algum momento da vida, que o que elas desejam fazer ainda não existe. Que não há no mundo um emprego, uma profissão regulamentada que consiga abranger sua missão no mundo. Diante disso só há duas saídas: viver infeliz ou inventar o seu lugar.


São pessoas inquietas, mas não necessariamente artistas. Muitos nascem com essa característica em áreas práticas como computação, arquitetura, engenharia, medicina. Querem fazer e ser o que ninguém compreende. Inventivos, visionários, criativos, loucos, inadequados, perdidos, iludidos são os adjetivos mais comuns na tentativa de enquadrar seres que não nasceram para caber em nada.


Sorte é quando isso tudo entra em ebulição dentro da cabeça acompanhado de uma dose exagerada de coragem. Ou de alguém que ande junto e diga que não há nada de mal em ser o que ninguém é ainda. A coragem tem de vir em toneladas suficientes para o consumo diário. É duro nadar para um lado, com os próprios braços cansados e fortes, quando todos navegam para o outro. Parece uma travessia sem sobressaltos, quando vista de longe.

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Quando eu era criança, fiz uma atividade de arte na escola e não consigo esquecer o cheiro do giz de cera. É diferente dos de hoje, atóxicos. Era forte, e eu respirava aquilo com a felicidade imensa por saber que encheria a página branca de cores.


Os alunos deveriam desenhar alguma coisa e depois pintar. Só isso. Faltou uma professora e precisávamos estar ocupados por algum tempo. Desenhem o que quiserem, é livre. Eu fiquei feliz e fiz ali alguma coisa que parecia uma reunião de flores de cores diferentes, vista por cima. Um sobrevoo acima de um canteiro livre e selvagem, pois eram muitas as formas das pétalas.


As crianças ao meu lado faziam casinhas, carrinhos, bonecas, pessoas. E eu cuidava de colorir as minhas flores abstratas. Eu chamo de flores hoje, mas na hora não fazia sentido, era abstrato demais para ter nome.


Foi difícil manejar o giz de cera e pintar cada pedaço sem repetir a cor ao lado. A professora veio até minha cadeira e reclamou. Não me lembro das palavras exatas, mas da sensação. Ela disse que eu iria demorar muito naquilo e que eu não conseguiria terminar, já que inventei de fazer uma coisa sem pé nem cabeça, um negócio sem cabimento. Todos terminaram e eu não. Bem que eu disse, comentou a pedagoga para a outra pedagoga. Aquela ali não termina nunca.


É verdade, nunca terminei. Continuo colorindo essas flores nesse pedaço de mundo que tenho inventado para mim, que construo pouco a pouco. Essa senhora não entendia nada sobre a alma humana, só sobre cumprir a rotina, o funcionar, o existir. Professora exemplar e disciplinadora. Eu não cabia no que ela entendia sobre o bom desempenho de uma aluna na aula de artes.


Por isso eu gosto dos que também não cabem nas expectativas do mundo. Mas sempre acho que essa inadequação existe para que os novos caminhos sejam abertos. É a angústia de não se adequar que desperta os desbravadores. Quem os leva mar afora é a coragem e as boas companhias na invenção uma vida nova. É assim que o mundo melhora. Vai melhorar.


Foto do Socorro Acioli

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