Logo O POVO+
Nosso signo inclemente
Foto de Socorro Acioli
clique para exibir bio do colunista

Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Nosso signo inclemente


Gabriel García Márquez dizia que Peixes é um signo inclemente. Perguntei o motivo, e ele colocou os dois indicadores em paralelo, cada um apontando para um lado. Há sempre a dúvida entre dois caminhos, uma decisão que nos encosta na parede e obriga a aceitar uma estrada, virar as costas para a outra e engolir o choro. Piscianos choram muito, enchem rios de lágrimas.


Talvez ele estivesse falando, dentre outras coisas, de quando o pisciano tem um talento artístico e precisa, em algum momento da vida, decidir entre seguir uma carreira possivelmente estável e lucrativa ou acreditar naquela voz dentro de si, que não cala um minuto e suplica que a vida seja dedicada ao chamado de um estado de arte, uma condição de entrega que cobra o preço alto da instabilidade.


Ou talvez ele falasse do constante conflito entre a zona de conforto e a vontade de aventura. Da beleza da solidão e da plenitude das boas companhias. O pisciano não está sempre indeciso porque quer ou gosta. É a vida que não poupa emoções e, de vez em quando, apresenta duas estradas opostas, sem chance de volta.


Quando a mãe de García Márquez o chamou para visitar a casa da avó e resolver a venda do imóvel, ela tinha a intenção de convencer o filho a voltar para a faculdade de Direito. Enquanto escutava a súplica da mãe, ele vislumbrou o primeiro lampejo do que seria seu principal romance, Cem Anos de Solidão. Anos depois, enquanto levava a família para uma viagem de carro, viveu uma nova epifania que mostrava o tom e a forma ideal para estruturar a história que ele começara a pensar anos antes. E assim foi, por tantas vezes, sendo obrigado a decidir entre opostos.


Gabriel García Márquez faria 90 anos nesse mês de março. Eu o conheci meses antes de completar 80 anos, quando saiu a desfilar por sua terra natal coberto de pétalas de rosas e borboletas dançarinas. Não tinha mais o frescor da memória recente, porém lembrava da infância com detalhes.


Terminar a vida doando vida é uma forma bonita de encerrar. Nessa doação, muitas sementes foram plantadas. A coisa mais improvável do meu destino até aqui foi ter feito parte dessa semeadura. Estive entre eles, os alunos de García Márquez. Mais que isso, eu estava lá quase como uma devota.


Onze anos depois, celebro o seu aniversário e percebo que não consigo mais falar dele sem chorar. O tempo passa e a semente que ele plantou já é uma pequena árvore com frutos do melhor sabor. Agradecer em palavra e prece sempre será insuficiente. A missão é frutificar.


Peixes, nosso signo inclemente, estará sempre propiciando situações de conflito e decisão. É a lembrança do encontro com o mestre do impossível que fortalece para que os passos sempre conduzam à bendita mania de contar. No aniversário desse mestre que mudou completamente a minha vida, renovo meus votos e promessas. Agradeço a tudo e a todos que me permitiram chegar até ele. E anuncio: é hoje o dia oficial do nascimento de um novo romance. Quando ficará pronto, ninguém sabe. Sou pisciana.


Foto do Socorro Acioli

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?