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Dolores precisa falar
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Escritora e jornalista com doutorado em estudos da literatura pela Universidade Federal Fluminense. Ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria de Literatura Infantil com o livro

Dolores precisa falar


A leitura é um gesto solitário. A literatura é um ato de comunhão. Tenho aprendido e constatado isso com a experiência de participar de clubes de leitura. Ler em grupo, escolher e compartilhar os pensamentos são movimentos urgentes nos tempos sombrios que vivemos.


Semana passada, fui convidada a conversar sobre o livro Lolita, no Ciclo de Debates Literatura e Sexualidade do Jornal O POVO/Fundação Demócrito Rocha, mediado pelos jornalistas Jáder Santana e Marina Solon. Foi um desafio refletir sobre um dos livros mais indigestos que li na vida. O texto me levou do desconforto ao asco, da revolta ao pavor.


Lolita foi escrito pelo autor russo Vladimir Nabokov e lançado em Paris em 1955, depois de grande dificuldade para encontrar uma editora que aceitasse a publicação. Hoje em dia, é considerado um dos grandes clássicos da literatura, o que gera uma série de controvérsias.


O tema do livro é a pedofilia, o abuso, a doença que faz com que homens maduros alimentem obsessão por crianças ou pré-adolescentes. No caso, Lolita é o apelido de Dolores Haze, de doze anos, assediada por Humbert Humbert até as últimas consequências. Ele casa com a mãe da menina, provoca a morte dela e vive uma relação de dominação doentia e criminosa com Lolita.


Ao olhar para esse texto, é preciso separar duas coisas: o tema e a construção literária. Vladimir Nabokov apresenta-nos um narrador que vai contar sua história em primeira pessoa, mas deixa claro que ele foi julgado, condenado e está preso. Essa escolha narrativa é quase como um bilhete do autor dizendo aos seus leitores: “preste atenção aqui, ele não é de confiança. Leia ciente de que ele é criminoso, perverso e genial na sua maldade. Abra os olhos, não acredite nele”.


Mesmo assim, as pessoas acreditam. Romantizam a relação entre HH e Lolita como se fossem um casal. Torcem por eles. Ler um texto literário é também compreender o lugar do discurso do narrador e observar as vozes que são caladas nesse discurso. Do começo ao fim, não temos acesso à nenhuma palavra dita por Dolores – cuja etimologia do nome já sugere a sua vida de dor. A literatura tem essa missão de expor feridas da sociedade e provocar a reflexão sobre elas – que partem desse desconforto de ver tão de perto o abuso de um pedófilo.


Há alguns dias, vi em uma rede social o seguinte alerta: escreva a frase “pai e enteada” no Google. O resultado fez-me chorar de pavor. O que aconteceu no âmbito ficcional dentro do livro Lolita é a realidade diária de muitas meninas, bem perto de nós todos. São Dolores sufocadas. Elas precisam ter voz. Elas precisam falar.


Assim como no livro do Nabokov, as garotas que sofrem violência sexual são caladas pelo domínio do abusador, culpadas e jogadas no canto mais escuro da sociedade. O agressor está dentro de casa, é o vizinho, é o pai da amiga, é um amigo da família.


Se um livro publicado em 1955 trata de uma chaga viva da nossa sociedade, ele é, sim, um clássico que precisa ser discutido, continuar incomodando e causando náuseas para lembrar que aquela construção ficcional asquerosa torna-se leve comparada à realidade que aparece em uma busca do Google.


Foto do Socorro Acioli

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