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Uma sociedade que lincha

2017-07-24 01:30:00

Viçosa do Ceará viveu uma tarde de fúria na segunda-feira passada, dia 17. Dezenas de pessoas se amontoaram na frente da delegacia da cidade na tentativa de linchar dois homens suspeitos pela morte bárbara de dois meninos. O ato só foi impedido após intervenção da PM, que teve de se valer de spray de pimenta, gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar os agressores. O assassinato das crianças choca e aguça nosso desejo de punição, mas a forma como a população reagiu à prisão diz muito mais sobre nós do que sobre os autores do crime, haja vista tratar-se de uma forma de “fazer justiça” em seu aspecto mais brutal.


No Ceará, essa prática tem crescido a ponto de Fortaleza ter sido apontada pelo jornal inglês The Guardian como a capital brasileira com o maior número de mortes provocadas por linchamento. Parece haver um apelo quase irresistível em cometer um ato como esse diante de uma realidade em que a Justiça dá a impressão de não apenas tardar, mas também falhar. Alguns fatores, contudo, contribuem para que o justiçamento ocorra impunemente. Identificar e punir os responsáveis por esse tipo de agressão não são tarefas fáceis para a polícia. Além disso, não há uma tipificação penal para o linchamento, dificultando seu registro formal. Trata-se de um crime quase perfeito.


Levantamento feito a partir de matérias publicadas no O POVO mostra que, de modo geral, os alvos dos justiçamentos no Ceará costumam ser jovens e adolescentes das periferias flagrados cometendo pequenos delitos, como furtos e roubos, ou homens adultos suspeitos de crimes sexuais. As situações mais comuns ocorrem quando pequenas comunidades se mobilizam contra suspeitos em situação de vulnerabilidade ou quando transeuntes presenciam a ação criminosa no momento exato em que ela é cometida. Não há um perfil específico do linchador. Qualquer pessoa pode participar do ato desde que as condições necessárias se façam presentes e isso é o que mais choca: a nossa vontade cada vez maior de resolver os problemas por meio da violência.


O sociólogo José de Souza Martins, estudioso do assunto, apresenta algumas pistas teóricas e históricas bastante valiosas. A expressão “linchamento” surge na metade do século XIX, durante o processo que marcou o fim da sociedade escravocrata dos Estados Unidos e tem um corte eminentemente racial. Segundo Martins, a fase mais aguda ocorreu entre 1870 e 1930 motivada pela decadência social e econômica dos brancos mais pobres, cujas frustrações e medos eram canalizados em agressões cometidas contra os negros, como uma forma de reação às políticas de igualdade de direitos civis.


No Brasil, os linchamentos possuem diferenças importantes em relação aos Estados Unidos, como o fato de serem fenômenos predominantemente urbanos e possuírem um caráter mais individualizado. José de Souza Martins afirma que os justiçamentos buscam a retomada da ordem e a defesa de valores, concepções e normais morais, como uma espécie de regeneração do corpo social. “Os linchamentos constituem resposta ao que é a transgressão do limite do socialmente tolerável”, afirma o sociólogo em um livro sobre o tema, cujo subtítulo é revelador: “a justiça popular no Brasil”.


O alvo do linchamento é visto, portanto, como um ser animalesco, maligno e monstruoso que precisa ser erradicado. O objetivo último daqueles que lincham é a morte do indivíduo transgressor. E isso só não acontece, em muitos dos casos, por causa da ação policial. Mais que um ato meramente irracional, o linchamento possui raízes profundas no modo como organizamos nossas relações sociais, como bem afirma José de Souza Martins. A “justiça popular” também é seletiva, não ocorre de forma generalizada e nem se estende a todas as pessoas. Há sujeitos mais “lincháveis” que outros e é contra eles que descarregamos toda a nossa ira.


Ainda que a impunidade nos revolte, é preciso ter sempre em mente que a justiça deve ser feita por meio do sistema de justiça criminal. Se as nossas instituições são lentas, míopes e ineficazes, cabe nos mobilizarmos para protestar e cobrar mudanças, como acontece nas demais sociedades democráticas. Recorrer à prática do justiçamento só nos torna criminosos. Não podemos ceder à tentação de nos transformamos definitivamente em uma sociedade de linchadores.

 

Ricardo Moura

ricardomoura@opovo.com.br

Adriano Nogueira

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