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VERSÃO IMPRESSA

Olhares sobre o medo

2017-03-20 01:30:00

Ricardo Moura

ricardomoura@opovo.com.br

“Em verdade temos medo (...) fomos educados para o medo (...) Fiquei com medo de ti, meu companheiro moreno, de nós, de vós: e de tudo”. Os versos do poema “O medo”, de Carlos Drummond de Andrade, foram publicados em 1945, mas dizem muito sobre os tempos atuais. O medo é um sentimento tão onipresente em nosso cotidiano que se tornou objeto de exploração tanto política quanto econômica. Uma das raízes para tamanho temor é o nosso desconhecimento sobre o Outro. Por causa disso, erguemos muros e repelimos aqueles que são diferentes de nós.


Os meios de comunicação têm uma parcela importante nesse processo de produção social do medo quando reproduzem estereótipos e aguçam os nossos mais baixos instintos. Já há muito que foi descoberto que medo vende jornal, eleva a audiência e rende cliques. O jornalismo pode servir, contudo, como uma ferramenta de (re) conhecimento do Outro. Isso é possível a partir de relatos jornalísticos que abordam o modo como as pessoas compreendem a vida, fazendo com que a nossa própria visão sobre o mundo se alargue.


Os estudantes de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) se dedicaram a essa experiência com resultados bem promissores. Dois especiais multimídia do projeto Espiral enfocam a segurança pública a partir de um ângulo que vai além da visão policialesca do tema. “Além dos Muros” (http://espiralufc.wixsite.com/alemdosmuros) aborda o medo e o destemor no espaço urbano. Já “Era Madrugada” (https://eramadrugada.wixsite.com/espiral) lança novas perspectivas sobre a Chacina de Messejana. Ambas as produções foram realizadas nas disciplinas Laboratório de Telejornalismo e Laboratório de Jornalismo Multimídia e podem ser assistidas na Internet. Um terceiro projeto também aborda o tema: o “Conexões - Dossiê Segurança Pública” (https://www.youtube.com/watch?v=gv6l8BYMod0), programa televisivo produzido pelo projeto de extensão GruppeTV, da UFC.


Em “Além dos Muros”, podemos conhecer o cotidiano de pessoas que lidam com a violência e a insegurança nas mais diversas situações. É o caso de um jovem que quase foi linchado na Messejana por se vestir de um modo “flagrantoso”, ou seja, sujeito a ser reconhecido como um criminoso pela população. Um entregador de bolo, que usa a moto como veículo de trabalho, reclama ser vítima de preconceito nas ruas: “Você percebe que as pessoas têm aquele temor quando você se aproxima. Tem até gente que esconde a bolsa com medo”, desabafa.


O documentário relata ainda como é a vida de ex-presidiários que trabalham. Preso em regime semiaberto, Lucival (nome fictício) se viu impedido de atuar como motorista e jardineiro por causa da tornozeleira eletrônica. Embora tenha um emprego na Coordenadoria de Inclusão Social do Preso e do Egresso, o que o ex-detento deseja é poder trabalhar ao ar livre. “Eu gosto é da natureza. É o que eu gosto… Eu tenho fé em Deus que eu volto pra lá, porque o gestor gosta de mim lá. Na hora em que eu tirar essa pulseira, vai dar certo”, afirma.


“Era Madrugada” apresenta os movimentos de resistência juvenil surgidos após a Chacina de Messejana. Produções culturais, marchas de protesto e mobilizações em redes sociais foram algumas das estratégias encontradas pelos jovens do bairro para lidar com a dor da tragédia. Fundador do movimento #tamojuntocurio, Jefferson Melo explica a motivação por trás de todos esses esforços: “Eu queria centralizar o assunto, não queria vingança, só visibilidade”.


Além da qualidade técnica dos trabalhos, que utilizam recursos diversos para dar conta da complexidade do tema (vídeo, história em quadrinhos, audiodrama, websérie), há ainda o mérito de tratar o tema “segurança pública” a partir do ponto de vista dos atores sociais. As pessoas não são objetos inertes. Elas tomam decisões, fazem escolhas, sofrem danos e têm de lidar com a repercussão de suas ações.


Levar em consideração as motivações e a capacidade de agir dos sujeitos é um elemento indispensável para que a nossa compreensão sobre a violência se torne menos abstrata e generalista. Em se tratando de segurança pública, o jornalismo tem muito a contribuir quando permite que a voz de todos os que são afetados pela violência e pela criminalidade seja ouvida e não apenas a dos agentes estatais e especialistas. Iniciativas como a dos projetos Espiral e Conexões são muito bem-vindas ao construir pontes em um cenário cada vez mais marcado por isolamentos, preconceitos e ódios gratuitos.

 

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