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Descriminalize já

2017-01-23 01:30:00

Ricardo Moura

O jornalista escreve esta coluna quinzenalmente

ricardomoura@opovo.com.br


Bruno e Tiago são jovens moradores de Fortaleza. Enquanto Bruno teve uma infância tranquila, aluno de colégio particular e tendo uma babá que cuidava no que fosse preciso, a mãe de Tiago trabalhava como empregada doméstica e a escola nunca foi muito atrativa, fazendo com que ele passasse mais tempo na rua do que sentado nos bancos escolares. Bruno começou a fumar maconha nas festas da galera e prosseguiu com o hábito na faculdade. Nunca foi repreendido nem abordado por policiais. Tiago não era usuário frequente, mas desde novo prestava pequenos favores para os traficantes do bairro. Foi ficando conhecido e logo passou a vender trouxas de cocaína em sua casa. Bruno conhecia a “bocada” de Tiago e costumava sempre se dirigir para lá a fim de fazer o “esquenta” antes de partir para a noitada. Tiago vivia arrumando “treta” com a polícia. Saiu e entrou de centros educacionais diversas vezes na adolescência. Bruno se forma este ano e distribui currículos atrás de trabalho. Tiago está preso. Foi detido com 45 gramas de cocaína e desceu direto para o presídio. Atrás das grades, não vai poder ver o nascimento da primeira filha.


As trajetórias acima, embora sejam descritas por nomes fictícios, são vividas cotidianamente por milhares de jovens. O consumo de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, é um dado muito presente em nossas vidas e nenhuma sociedade humana prescindiu de seu uso. O modo como nos relacionamos com os entorpecentes, contudo, precisa urgentemente se tornar um objeto de discussão. Já vimos que não resolve insistir na guerra contra as drogas, uma estratégia com forte viés punitivo e hipócrita (haja vista que a execução da legislação sobre drogas não se aplica a todas as pessoas da mesma maneira). É preciso pensar além do tabu da repressão para que se possa encontrar alternativas e o derretimento do sistema prisional é uma boa oportunidade para que possamos retomar esse debate.


Um bom ponto de partida para se compreender a dimensão do problema é o livro O fim da guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas, do jornalista Denis Russo Burgierman. O autor viajou pelo mundo coletando experiências sobre como as sociedades lidam com o uso/consumo de entorpecentes. O modelo adotado em Portugal é apontado como um caso muito promissor.


Os ganhos obtidos com as drogas são absurdos e movimentam uma rede criminosa bastante vasta. Burgierman revela que as folhas de coca são compradas a 50 centavos de dólar na América do Sul e revendidas sob a forma de grama de cocaína nos EUA por 100 dólares, ou seja, um lucro de 99,50 dólares por grama. Trata-se de um negócio lucrativo e que se alimenta do próprio sistema que o reprime. As mudanças deveriam vir por meio da criação de uma nova política para lidar com as drogas em que a regulamentação do comércio da maconha (cujos usuários representam em torno de 80% daqueles que consomem drogas ilícitas), por exemplo, possa servir como um elemento que desincentive seu próprio uso. “O centro da política precisa deixar de ser combater a droga — o que precisamos é evitar que as pessoas façam bobagens usando drogas”, escreve Burgierman em seu livro. Tais medidas retirariam a ênfase do problema nas substâncias químicas, tornando os cidadãos mais responsáveis pelo que fazem.


A criminalização do usuário está sendo julgada no Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Gilmar Mendes, relator do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, nº 11.343/2006, que define como crime o porte de drogas para uso pessoal. Para Gilmar Mendes, a “criminalização estigmatiza o usuário e compromete medidas de prevenção e redução de danos”. Dois ministros se pronunciaram a favor desse entendimento. O ministro Roberto Barroso propôs ainda que o porte de até 25 gramas de maconha ou o plantio de até seis plantas fêmeas sejam considerados como parâmetros para a diferenciação entre consumo e tráfico. A decisão sobre o caso, contudo, ainda deve demorar. À época, o ministro Teori Zavascki pediu vista, suspendendo o julgamento. Com a morte dele, uma nova solução terá de ser encontrada.


Embora a descriminalização possa vir por meio de uma decisão judicial, se não houver uma mudança mais ampla na mentalidade e no modo como encaramos o uso de entorpecentes, vai adiantar de muito pouco o trabalho realizado por órgãos como a Secretaria Especial de Políticas sobre Drogas (SPD). Mais que um caso de polícia, o consumo de drogas deve ser visto primordialmente como uma questão de saúde pública.

Adriano Nogueira

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