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O momento presente
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

O momento presente

A Pedro Henrique Vieira Costa


Não sei o(a) caro(a) leitor(a), mas sinto-me muito cansado. Exausto dessa rocambolesca e pútrida novela cotidiana, cujos capítulos são escritos com a tinta esverdeada da bílis. Exaurido pela ração de ódio diária, compartilhada entre meus iguais e jogada na cara dos que estão na outra trincheira, batendo panela ou dançando zumba. Extenuado pela discussão infinda dos mesmos assuntos, dos mesmos dissensos, das mesmas besteiras. Alquebrado pela sequência de más notícias, que nos mostram que sempre é possível a situação piorar ainda mais, que o fundo do poço nunca chega. Fatigado de tanta burrice, de tanta sacanagem, de tanta desonestidade, de tanta falta de rumo. Esgotado pela escassez de perspectivas, que faz com que os aeroportos, mais uma vez, se transformem na nossa única saída. Cinismo com maldade, amargo coquetel.

O panorama atual faz-me lembrar do início dos anos de 1970. Sufocados os sonhos libertários a golpes de leis, baionetas, eletro-choques e paus-de-arara, pareceu a certa parcela da juventude brasileira que o caminho para a felicidade seria o do desbunde, a criação de um universo paralelo, um paraíso artificial, erguido tijolo a tijolo pelos facilitadores químicos. Numa palavra: se a realidade nos é ingrata, fujamos dela e criemos outra, mais risonha. Passo perigoso este, dir-se-ia até covarde, o de desistir de mudar a existência, de forma solidária, em favor de uma alegriazinha bêbada, individual e momentânea. Mas é a isso o que muita gente boa está se entregando. Fugir, escapar, escapulir, tentar ser feliz em algum lugar, mesmo à custa daquilo em que sempre se acreditou ou se entendeu como certo. É enxugar as lágrimas nas costas das mãos e seguir.

Do lado de cá, como consolo, surgem teorias diversas, algumas conspiratórias, outras simples placebos, geradas para estancar a forte decepção, expressa na apatia generalizada. A mais frequente é aquela que propõe a tolerância quanto à permanência do interino até o fim do mandato presidencial “para fazê-lo sangrar nas ruas todos os dias, assim como fizeram com a Dilma”. Esquecem-se, talvez, de que a tal “autoridade” é da família do Conde Vlad da Transilvânia e, como se dá nos filmes de vampiro, o sangue a ser derramado será somente o nosso. Ademais, o que está em curso é a destruição do País pela negação de tudo de bom que se construiu nos últimos anos e a venda de ativos relevantes. Ao final dessa macabra ciranda, o que restará de pé? Com a crença eleitoreira nas velhas lideranças, não cuidamos das muitas surpresas que poderão brotar.

Pois é, peguei-me praticando o que lá atrás havia criticado. Não tem jeito, é da minha natureza, aqui repetindo as palavras do escorpião que cravou seu peçonhento aguilhão no espinhaço do pobre sapo que lhe servia de canoa na travessia do rio. Na noite em que a câmara federal (minúsculas, revisor, sem pena), em mais uma de suas dantescas sessões, rejeitou a denúncia formulada contra o interino, mantendo-o no cargo, estava com amigos num bar, ouvindo boa música. A revolta e o mal estar era tão palpáveis quanto o alcatrão nos dedos do finório Macaco Simão. Contudo, mesmo assim, conversávamos, brincávamos, ríamos. Súbito, vieram-me à mente cenas de A noite dos desesperados, filmaço de Sidney Pollack do final dos anos de 1960. Pessoas arruinadas dançando em busca de algum contentamento. Assim como nós ali. 

 

Por Romeu Duarte

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