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Pantagruel aposentado
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Pantagruel aposentado


Revelado o cruel diabetes pelos implacáveis exames (“quem procura, acha”, disse o concunhado sacana alguns dias antes), teria agora que se reinventar como pessoa. Ao sair da clínica com os papéis na mão, era ver um condenado galgando o patíbulo. Sempre fora alucinado por comida, de preferência as emocionantes, tudo com dois ovos em cima, talvez por atavismo da família interiorana, e agora essa. Sem saber para onde ir, passou defronte a um food-truck onde um gordinho devorava um hambúrguer com gosto de gás, a gordura da iguaria escorrendo pelos dedos fofinhos. E ele, cujo estômago não veio ao mundo a passeio, teria agora que se contentar com rodízio de chuchu e fartas porções de alface.

“Égua, aí é a morte”, pensou ele, resignado, que costumava pensar no cardápio da janta com a boca cheia do rango bom do almoço.


Já em casa, talvez para se torturar, fez um inventário dos pratos que adorava em tom de lamentoso adeus. A inevitável feijoada dos sábados, o caldo grosso do feijão preto, os embutidos, a costelinha defumada e a carne seca misturando-se ao branco do arroz e ao verde da couve. A panelada cortada em modo curto, as tripas envoltas no molho dourado e cobertas com a farinha imaculada. A buchada aberta sobre a ensopada farofa de cuscuz, o vapor dos miúdos evolando-se no ambiente, os pezinhos do carneiro sacrificado só ouvindo a conversa. O bife de fígado fresco acebolado, grossas côdeas embebidas na banha marrom da panela.

O pernil de porco fatiado em róseas lascas, comidas sofregamente com as mãos untuosas. “Never more, never more”, grasnava-lhe o corvo de Poe, pousado em seu rechonchudo ombro.


Carnívoro inveterado, o quanto de fauna não teria papado durante a vida? A peixada de arabaiana na água grande, servida com o quente e generoso pirão e o indispensável par de ovos cozidos. O franguinho caipira preparado com quiabo e devorado com angu à mineira. O bode escalado e assado na brasa, mandado para dentro com um cheiroso arroz de leite. A coxa de pato en confit, a carne de sol desfolhando-se ao toque do garfo, a gorda curimatã ovada deglutida à beira do açude, tudo agora era só saudade. Quase foi às lágrimas ao lembrar do longo capítulo dos doces. O bolo Luís Felipe, que conheceu em Sobral, uma delícia feita com 24 gemas douradas. A goiabada cascão com queijo coalho, as muitas mousses, o pudim de leite condensado, o manjar de coco, todos doravante seriam fichados como criminosos e postos longe de si.


O jeito era se conformar com a sorte, mesmo madrasta. Cortada a cerveja, que bebia em volumes industriais, restava-lhe a taça de vinho, que achava pedante. Com níveis altíssimos de glicose nas veias (“esse cara tem sangue no açúcar”, gozou o concunhado sacana, ao saber do resultado dos exames), agora era encontrar graça na nova dieta: magros repastos desnatados e sem pele, fibras, cereais, verduras e frutas. Longas caminhadas de manhã e muita água mineral. Quem sabe ioga, meditação e controle da respiração não lhe ajudariam nessa nova caminhada? Um outro viver, com outras possibilidades, se abria para ele. Sim, acharia a felicidade nas coisas simples e contidas, no rigor espartano do existir. Foi só concluir este pensamento para ouvir da rua a cantada vil do diabo: “Churros com doce de leite! Quem vai querer? Até diabético encara...”.

Foto do Romeu Duarte

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