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Desilusão
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Desilusão


Despede-se de mim, pelo celular, o meu bom amigo. Vai com a mulher para Portugal. Cioso da língua de Camões e Machado, fala para mim da diferença (doída) que há entre as preposições “a” e “para” quando se trata de viajar. Filhos criados, recém aposentados (começaram novos), tomaram a decisão num almoço de domingo. “Não há nada que nos faça ficar aqui mais”, disse-me ele, a voz firme do outro lado da linha. “Quer dizer que vais abrir mão da praia, do caranguejo e do bronzeado, meu caro?”, cutuquei. “Praia, crustáceos e sol são os bichos que mais rolam por lá. Já ouviu falar da praia de Nazaré, onde se pratica surfe radical? As daqui nem incham...”. “E a vida tranquila daqui, vais rebolar no mato?”, provoquei-o. “Tranquila?!”, espantou-se, “Não viu as últimas estatísticas do crime? Essa é uma das razões que nos fazem ir embora”.

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Comecei a sentir que o negócio estava mais difícil que eu imaginava. “Não acredito que vais desistir da feijoada da Zena, da buchada do Nem e da panelada do Caio”, tirei-o a terreiro mais uma vez. “Cabra, quem tem bacalhau, pescados de infinitos tipos, porco e caça farta não morre de fome. Vinho, então, você pode beber uma garrafa todo dia durante um ano sem repetir um rótulo sequer”, gozou. “Aliás, quem quer comer churrasco de carne de papelão na laje? Só os executivos da JBS e da Odebrecht”, riu-se numa risada folgada e gostosa. “E o que vais fazer lá? Algum emprego, trabalho novo?”, quis saber. “Vamos com as nossas aposentadorias integrais que, graças a Deus, conseguimos salvar do confisco que esse governo canalha está aí a tramar. Como estás a ver, gajo, nem gerúndio nos verbos uso mais, pá...”, frescou.


A coisa já tomava ares de inevitabilidade. “Cara, não vais ter saudade nem do futebol, do teu Ceará?”, ferroei. “Que Ceará que nada!”, zangou-se, “Um time que só foi campeão por que os outros eram bem piores do que ele! Velho, virei fã do Cristiano Ronaldo. Tem alguém aqui melhor? Não, né?”, curtiu. “E quanto à música, rapaz? Tu não eras doido por samba e bossa-nova?”. “Isso aí não toca nem no rádio mais, virou lance de intelectual. Hoje só dá Safadão, Joelma e Chimbinha. Comigo não, violão. Sou mais o Madredeus (a Teresa Salgueiro, ai, ai, meus pecados...), a Dulce Pontes e a Carminho”, suspirou. “E o velho e bom ofício profissional, vais esquecê-lo?”, arrisquei. “Lá, num passeio, vê-se um Siza, um Souto de Moura, um Carrilho da Graça a todo instante. Diferente daqui, onde há muita construção e pouca arquitetura, pois não, amiguinho?”.


Incomodava-me o meu querido camarada ter resposta para tudo e o mais aborrecido, ter argumento sobrando. “E a ruma de amigos que vais deixar aqui, não tens pena deles?” (joguei baixo, confesso). “Como dizia o Dominguinhos, que Deus o tenha”, cantarolou ele, “Amigos, a gente encontra, o mundo não é só aqui, repare naquela estrada, que distância nos levará?”. Como não conseguia demovê-lo da ideia fixa, resolvi apelar para a política, uma de suas paixões. “Companheiro, passamos por um momento delicado, eu sei. O País foi virado pelo avesso pela corrupção generalizada. O Executivo, o Legislativo e o Judiciário, assim como o setor privado, estão todos afundados na lama. Mas 2018 vem aí. Ou antes, com as Diretas Já. Vamos passar o Brasil a limpo!”. A ligação terminou com a gargalhada dele, a sutil trilha sonora do desencanto.

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