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Ah, o gênero humano
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Ah, o gênero humano


Entraram praticamente juntos no colégio da elite fortalezense. Ele carrancudo e ela leve, de bem com a vida, ambos de meia idade. Ele, com os fios grisalhos já ganhando dos negros na densa cabeleira, e ela, muito bem apanhada, as pernas roliças. Ambos descasados. Não se conheciam. Foram direto à diretoria do estabelecimento, onde foram recebidos pela secretária, que lhes pediu para aguardarem um pouco, pois a diretora iria demorar. Ele sentou-se na poltrona e ela no sofá. Na mesinha de centro, informes colegiais e revistas de amenidades. Não se ouvia a costumeira algazarra dos alunos; o colégio, de pedagogia moderna e um dos preferidos das famílias ricas da cidade, havia comunicado sua adesão à greve geral e suspendido todas as suas atividades naquele dia. “Tem gente que acha que direito é luxo”, disse a secretária.


“Isso é um absurdo!”, rugiu o homem, indignado. “Se quisessem paralisar, que usassem o 1º de Maio para isso! Trabalhador protesta é no Dia do Trabalho, não é?! É só o que a gente vê na televisão todo ano. E o que mais me invoca é que o colégio é privado, com professores ganhando bem. Se fossem ao menos os do Estado ou do Município, coitados, vá lá...”, vociferou. “O senhor está muito irritado”, falou a mulher, “e a causa desse aborrecimento todo talvez seja o pouco conhecimento da realidade e da história do Brasil”. “Como é, minha senhora?!”, admirou-se o homem com a argumentação dela. “Pois é, greve é isso mesmo, é quando todo mundo saca que o rei está nu. E como esse aí está nu, não? Se fosse para a gente frescar, era só botar uma camisa verde-e-amarelo e ir para a Praça Portugal dançar zumba”, massacrou a dona.


“Já vi que temos visões completamente diferentes desta situação”, grunhiu o sujeito, a cara um bloco de granito. “Não me diga, meu caro, como você é perspicaz”, curtiu ela. Ele fez que não ouviu a desfeita e soltou a farpa: “Esses vagabundos, com essa tal paralisação, só fizeram aumentar o feriadão. Comunista adora uma molezinha”. “Amigo”, reagiu ela, “não é paralisação, é greve. Vagabundo é quem quer anular conquistas duramente alcançadas. E esse papo de comuna, petralha, não cola, querido. As pessoas estão na rua para defender os seus direitos, o meu, o seu, o dela aqui, o de todo mundo. É por isso que eu digo que você precisa estudar um pouco mais a história deste país”. A secretária acompanhava o debate, séria por fora e às gargalhadas por dentro, torcendo pela mulher e para que a diretora demorasse ainda mais.


“Não vou bater boca com você, moça, pois tenho educação”, falou secamente o homem. “Como a diretora não vem, senhora secretária, digo-lhe o seguinte: tenho dois filhos aqui. Vou descontar das mensalidades deles o dia de hoje. Não aceito reposição de aula no sábado”, pondo fim à conversa. “Aproveita e deposita esse dinheiro numa poupança”, curtiu a mulher, “seus filhos, quando se aposentarem, podem precisar dele”. O homem bufou e saiu da sala. Logo após, tendo resolvido seu assunto, a mulher sai do colégio e encontra o homem na calçada. “O diabo do carro quebrou. Que fase a minha!”, lamentou-se. “Você sabe andar de bicicleta?”, provocou ela. “Sei, sim, mas há muito que não ando”. “Ninguém esquece isso. Tem um bicicletário ali. A gente pega duas e vai até à praia. Que tal um sorvete de cajá?” Quente sexta-feira molhada...


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