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Mais uma velinha no bolo
Foto de Romeu Duarte
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Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, é especialista nas áreas de História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. Escreve para o Vida & Arte desde 2012.

Mais uma velinha no bolo

Acordou cedo naquela fria manhã colonial. Fazia aniversário na data. No dia anterior, ao ser perguntado por um aluno se poderia recebê-lo para consultas, mesmo sendo seu aniversário, respondeu que este era apenas mais um dia comum, igual aos outros do ano. Achava graça de quem faltava ao trabalho e dava como desculpa a agenda natalícia, o dedo no calendário e o riso na cara. “Na verdade”, teimava ele, “quem age assim se presenteia com o melhor dos presentes: o ócio”. Lá fora, o céu se desmanchava em chuva. Foi surpreendido na sala pela família, mulher e filhas, que imaginava dormindo a sono solto, ainda mais com um líquido estímulo desses. Beijos, abraços, felicitações e um novo par de sapatos com a sobriedade de sempre. O café da manhã parecia de hotel, sortido e refinado, o ovo mexido fulvo e fumegante.

 

Correu os olhos pelo jornal. Seus parabéns eram compartilhados com todas as mulheres do mundo, de modo especial com a Barbie, ela mesma, a boneca, nascida no mesmo ano, mês e dia que ele. Já se acostumara às brincadeiras que os amigos faziam consigo toda vez que o 8 de março chegava. A bela foto do Açude do Cedro, com um espelho d’água brilhando à luz solar, jazia sob a má nova acerca do baixo volume do Orós, o que o impedia de banhar e dar de beber à Loura. A queda de 7,2% do PIB marcava a pior recessão do País desde 1930. Porém, nem tudo estava perdido: O Que Não Merece Ter o Nome Dito teve recurso negado no Supremo e segue réu por incitação ao estupro. Se os norte-americanos estão fazendo menos sexo, a pobreza aumentou de modo recorde na Alemanha. “Ah, Caetano, quem lê tanta notícia?”.


Nas redes sociais, as congratulações já somavam mais de três centenas, a maior parte delas desejando-lhe saúde antes de tudo. Curtindo férias, mas carregando pedra, lembrou-se de ir ao Eusébio para ver como estava a situação de um terreno há muito comprado por seu pai. Em lá chegando, deparou com uma mega-invasão. Quase todo o loteamento ocupado na base do usucapião. Após consultar o mapa, viu que o lote que procurava abrigava duas casas de aflita arquitetura. “Era do senhor?”, disse a senhora grisalha, a pele um pergaminho, sentada na cadeira de balanço, quase sem poder reprimir a gaitada. “A Região Metropolitana de Fortaleza constitui-se hoje de imensas ocupações irregulares e de condomínios horizontais fortificados”, falou mais tarde, no escritório, ao orientando atento, o juízo preso na tese.


Ao cair da tarde, marcou uma cervejinha com uns fiéis camaradas no bar de estimação. Quando lá ancorou seu boêmio barco, eles já estavam instalados. Foi recebido com palmas e cumprimentos. “Mais uma volta completa da Terra em torno do Sol”, brincou ele, ganhando dos companheiros uma salva de vaias e 15 segundos do tradicional bordão “aí dentro”. Alguns trouxeram-lhe mimos. “Engraçado, antes eram livros e CDs à mancheia”, pensou, “Agora é só garrafa. Por que será?”. Um mais gaiato passou-lhe um embrulho com carambolas maduras, recomendando-lhe moderação no consumo, mode os rins. A amada ao lado era só carinho e bem-querer. “Quase sessentão”, matutou, “Tens razão, Mick Jagger, o tempo não espera por ninguém”. E assim foi a noite, essa pantera, de manso em manso, de gole em gole.

Foto do Romeu Duarte

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