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Esperança
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Escreveu livros de literatura fantástica e de contos, como

Esperança


“Em contato com os homens, as coisas se consomem com uma lentidão desesperadora”

(Inferno – Henri Barbusse)

“Triste daquele que sobrevive aos seus”, a frase martelara-me o juízo a madrugada inteira e continuou rodopiando na cabeça o dia todinho: e já vem chegando o fim da tarde sem que eu consiga sequer lembrar quem a pronunciou – devo ter ouvido por aí, perdida em qualquer boca, num discurso televisivo, ou sermão de missa?, talvez nalguma aula da infância; estaria escondida nessa misteriosa “caixa-preta” do inconsciente? Infelizmente não consigo precisar a fonte. A velhice é mesmo uma merda, temos tanto para recordar, aliás: só nos restou isto a fazer, e a mente – impiedosamente – nos trai; quando penso que não esquecia nadinha na juventude... Pudera, quase nada tinha para relembrar. E agora... Droga!, não há muito o que lamentar, talvez eu até sofresse mais se tivesse boa memória. Mas pelo menos na infância o tempo escorria de vez, não ficava como esses dias arrastados, não querendo se acabar nuuunca... Quem sabe esteja, o maldito dia, esperando alguma atitude digna de minha parte, que pouco tenho a fazer senão espreitar os minutos manquitolarem nesse velho relógio da sala, que foi herdado de meus avós... Na verdade, são as horas quem nos aguardam, desde o princípio, paaacientemeeente. Nós-que-enfim-passamos-por-elas...


Também a vista já não me ajuda, há muito deixou de ser minha aliada; sinto, pois, o tempo passando agora não mais pela gasta retina... porém-pelo-vento-do-entardecer-esperando-o-crepúsculo e, depois, a looooooga-espera-pela-eterna-aurora; me redimo somente pelos cheiros das flores desse jardim mal cuidado, que até – faz pouco – me dividiam o ano todo narina adentro: mês-a-mês. Baseava-me ademais nas brincadeiras das crianças, aquele irritante alarido que me chegava sempre: nos tempos de chuva elas reinavam de triângulo no enlameado das ruas, de vez em quando eu me deliciava com as suas confusões por causa das distâncias dos ferros metidos no chão; já nos meses de ventania não mais lançavam barquinhos de papel na enxurrada, mas preparavam diabolicamente o cerol de cacos de lâmpadas para esfregar nos finos fios de suas arraias. Os gritos eram outros, bem espaçados e distantes, trazidos pelo vento, e se perdiam na imensidão: muros eram escalados, quintais devassados, casas invadidas, nas buscas das pipas extraviadas, eternos troféus de guerra que, mal sabiam, perseguirão pela vida afora. Em pleno setembro as ligeiras “chuvas do caju” concediam pequenas tréguas aos meus fadigados ouvidos – e uma paz enfim tomava conta das ruas, despertando em mim as primeiras melancolias; dali até o Natal era aquele desfilar de recordações: uma tristeza impiedosa me invadia...


Então espero, sinceramente comovido, mais uma passagem de ano, muito embora não compartilhe a mesma insana alegria com todos; um período igual aos demais... Menos para mim, que não vivo mais entre as inúteis coisas do mundo (reles coisinhas que parecem zombar de nossa ligeireza em ultrapassar os dias), e que sobrevivo apenas me agarrando nesses invisíveis fiapos de lembranças. Que permaneço somente na incerteza: se este será, finalmente, o último... Não acredito muito, embora tenha bastante esperança.

Foto do Pedro Salgueiro

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