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Uma crônica feliz
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Uma crônica feliz


Me perdoem a sinceridade, mas eu acordei feliz. Contra todos os prognósticos, era assim que me sentia. Feliz e alienígena. Mal abri os olhos, e essa onda começou. Mas tinha o problema de que não se escreve nada que preste com felicidade e ontem era dia de escrever, então tratei de me sentir triste.


Mas não durou muito tempo. A felicidade ficou puxando o punho da camisa, como criança que pede sorvete ou brinquedo novo. De todos os sentimentos, esse é o mais inconveniente. E ainda atrapalha o azedume da gente. Eu gosto de gente azeda, abusada, gente que olha e franze a testa. Gente que tem sobrolhos. Detesto gente excessivamente feliz, que transmite uma bomba atômica de “gratiluz” às 7 horas da manhã, varrendo quarteirões inteiros com uma ogiva de felicidade.


Por exemplo, não entendo gente feliz numa fila de supermercado. Por quê? Estamos ali esperando pra trocar dinheiro por mercadoria ruim, perdendo tempo e vida, escutando uma música terrível cercados por marcas e preços fraudulentos numa temperatura que muda conforme a porta automática se abre (jato quente) ou fecha (refrigerado). Pra piorar, com um sistema de som pedindo ao vendedor X pra comparecer ao setor Y, tudo mediado por códigos motivacionais e numa voz monocórdia de quem anuncia o fim do mundo.


E, no entanto, há gente feliz no supermercado. É um desses mistérios de Fátima. Pois foi assim que me senti ontem: feliz como um ET perdido entre gôndolas. Descontente comigo mesmo, mas não o suficiente pra ficar triste, procurei os jornais. Calculei que nenhuma felicidade resiste a uma leitura atenta do noticiário do dia. Passei as folhas com calma. Me detive na parte policial e, como não surtisse efeito, saltei pra política.


Tiro e queda. Reforma trabalhista, Temer, Maia, Doria, Aécio, Lei de Uso e Ocupação do Solo. Quis esmorecer. Fui perdendo energia à medida que as figuras mais notáveis da República desfilavam diante dos olhos, felizes depois de aprovarem uma medida que dificulta a vida de quem ainda tem trabalho. Me alegrei porque tinha conseguido ficar triste.

 
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Mas, pra minha decepção, isso passou logo, e comecei a me sentir triste por estar alegre novamente. Então li notícias sobre a explosão de homicídios em Fortaleza. Nada. Conferi o resultado no futebol: Ceará derrotado. Dei uma espiada na Mega Sena: não fui sorteado.


Resolvi apelar. Abri o Facebook: muita gente feliz, de férias e feliz, o que é duplamente irritante. Triplamente se a pessoa está feliz, de férias e na Praia de Iracema postando fotos do céu ao entardecer. Quer coisa mais brega que gente aplaudindo o por do sol ou escutando música tocada num piano branco? Que felicidade sobrevive a um piano branco à beira mar?


A minha, pensei. Porque continuava feliz. A reforma tinha passado, o empresariado local estava fatiando a cidade com emendas prestes a serem aprovadas na Câmara Municipal e ninguém dava um pio, um heliponto seria instalado no espigão do aterro, o futebol local só decepcionava, a praia estava ruim pra banho, os amigos mantinham-se calados sobre o atraso do edital da cultura, o Estoril agora era uma repartição, a biblioteca pública continuava fechada, mas havia muitas razões pra gente estar feliz. Era assim que me sentia. Inexplicavelmente feliz.

Como um ET.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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