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Lendas do Ceará
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Lendas do Ceará


O Ceará é pródigo em lendas, que se renovam com uma força espetacular. A Feira dos Pássaros, por exemplo, é um manancial de lendas, e dizem que a história da Perna Cabeluda nasceu por lá. Ou foi o João Inácio Jr. que inventou?


A universidade também produz suas lendas. Os jornais, as suas. A barraca de praia, os palácios, o teatro e os cinemas são todos lugares lendários. As esquinas do Centro, lendas, assim como é o encontro do rio com o mar. O metrô é tão lendário quanto Iracema e o Bode Ioiô. Os tatuzões são oniricamente lendas, e as obras do Acquario já pertencem ao campo semântico do Curupira.


Tem a lenda do escritor sem obra, aquele cujo legado é uma série de postagens de Facebook e Twitter que depois serão reunidas em um livro volumoso que ganhará o Sereia de Ouro de Ficção Alencarina, prêmio a ser instituído num futuro não tão distante com patrocínio de empresas do setor calçadista e de massas e biscoitos.


Há também a lenda do poeta sem rosto, um clássico cearense tão presente em nossa vida quanto a do artista plástico cujo loft é uma armadilha sensual para desavisadas. Vale destacar ainda: a lenda do arquiteto de esquerda que só contrata obras para o governo, a do governista de oposição, a da oposição adesista, a do jovem artista cujo grande talento é chegar aos 45 anos ainda promissor, a do autor que se autoconsagrou como autor consagrado, a do polemista conciliatório, a do ator libertário e preconceituoso, a da praia própria para banho, a do centro cultural sem cultura e por aí vai.


O rosário é inesgotável. Entre nós a força narrativa é quase sobrenatural, despontando com uma facilidade só comparável à da fofoca. Fofocamos e criamos lendas a granel. Um cearense, sozinho ou acompanhado, é sempre como um chinês empenhado em maximizar os estragos de qualquer enredo, verdadeiro ou não.

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Todos conhecem a lenda da jovem produtora cultural cuja nobre filiação garante sempre bons projetos em prefeituras de aliados? E a do cineasta “treteiro” eternamente em posição de ataque? E a do jornalista e crítico que desautoriza qualquer coisa que se escreva em sua área? E, talvez uma das mais intrigantes, a lenda do curador que se informa pela Wikipédia?


Tem ainda a lenda da revista literária que é, na verdade, uma coluna social de bem-nascidos da classe média ilustrada. A lenda do gestor progressista (pinta ciclofaixas de manhã e fatia a cidade em sesmarias de noite). A lenda do legislativo independente. A lenda dos editais para a cultura. A lenda do dinheiro para a biblioteca. A lenda da secretária premiada por construtoras palestrando sobre sustentabilidade. A lenda de que tudo que prometem durante as eleições não é lenda.


Nesse panteão de lendas modernas, a que menos me espanta é a da mulher que cola cadeados de madrugada. É tão verossímil, tão compreensível, tão cearense. Uma solitária que arrasta uma sacola, como qualquer nativo, e, sem nada melhor que fazer, sai pela cidade atando com cola-maluca as fechaduras do comércio e outros estabelecimentos.


É bem o tipo de coisa que qualquer cearense cansado de tanta lenga-lenga faria se, de repente, ele mesmo se enfastiasse de tudo isso e quisesse se tornar uma lenda urbana, assim como a loura do banheiro. Ou a reforma do teatro São José.


Foto do Henrique Araújo

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