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Acho melhor não
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Acho melhor não


A recusa nunca esteve tão em voga quanto agora. Pudera. São tempos bicudos, dir-se-ia azedos mesmo. Tempos pra desconfiar da própria sombra quando a própria sombra olha pra gente de banda. Eu mesmo queria negar, recusar, rejeitar, mas só posso mesmo é recusar a recusa e dizer sim.


A frase se tornou célebre nas páginas de Bartleby, o escrivão, livro de Herman Melville publicado em 1853. Certo dia, o chefe pede a Bartleby que execute uma tarefa, ao que ele responde: “Eu preferiria não fazê-lo”. A negativa, por banal que seja, é sempre desconcertante. É a partir dela que me pergunto se não seria o caso de preferir não fazer também, seja lá o que for.


Viver em recusa requer trabalho, e trabalho cansa. Ninguém quer se cansar, portanto dizemos “sim” de vez em quando, mais por preguiça que por convicção. Ou seja, essa afirmação nem sempre é uma prova de que estamos envolvidos ou dispostos ou realmente convencidos. É mais como uma desculpa ou um modo de afastar pessoas/tarefas chatas. Digo logo que faço e pronto, nem que depois me arrependa e tenha de dizer um não redondo.


Mas, assim como a recusa genuína do personagem de Melville, há um segundo tipo de resposta, que tem a ver com outro clássico. De 1922, Ulysses, escrito por James Joyce, termina com uma afirmação de Molly Bloom: “sim, eu disse sim, eu quero, Sim”, com a última palavra grafada em inicial maiúscula para que não reste dúvida de que o gesto implica uma aceitação de todos os riscos embutidos. Bloom aceita a vida, o amor, o perigo. É, nesse sentido, o exato o oposto do não de Bartleby.


Ocorre que, como contrários, o não e o sim se tocam de vez em quando, de modo que Bartleby e Molly Bloom estão mais perto do que imaginam. O não porque é uma recusa corajosa, um ato que envolve um risco. Não fosse assim, não causaria uma ruptura na rotina do escritório onde trabalha o escrivão. Esse “não” bartlebyano instaura desordem. Logo, é carregado de potência: é a rejeição em estado bruto, ainda que suavizada por uma construção irônica expressa no tempo verbal de “preferiria” (o futuro do pretérito), usado normalmente para pedidos feitos educadamente (você poderia, você faria).


O “sim” de Bloom é surpreendente, mas não irrefletido. Dito ao final, funciona como a conclusão de algo que se acumulou. Nesse sentido, a resposta da personagem não seria diferente: é sim e apenas sim, tendo em vista tudo que já foi vivido anteriormente. E não há nada num sim ou no tempo verbal da frase (eu digo, eu quero) que possa levantar qualquer dúvida sobre a disposição de Molly. Ela não somente quer, mas fará o que quer.


Acho que, no mais das vezes, a gente vive um pouco entre essas duas atitudes paradigmáticas: o sim categórico e o não incerto. Se dissermos mais sins que nãos, a engrenagem desanda. Se, por outro lado, passamos a mais nãos que sins, tudo desmorona. De maneiras diferentes, ambos causam um descompasso entre a rotina e a ordem das coisas. E isso tem um lado bom.


O ideal, claro, é combinar as atitudes das personagens. Em alguns casos, sair-se à maneira de Bartleby (preferiria não fazê-lo). E, noutros, afirmar-se com entusiasmo, aceitando as danações que possam advir da sua escolha, tenha ela a dimensão que tiver. Talvez até juntando as duas: eu
preferiria dizer sim.

Foto do Henrique Araújo

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