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O outro lado da Cidade
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

O outro lado da Cidade


Eu quero pensar no futuro, no meu e no da cidade, e tudo se embaça. Olho essas fotos da rua José Avelino e as minhas próprias fotos de criança à procura de que, como pitonisas, digam alguma coisa sobre os dias que ainda virão. Quero dias tranquilos, dias de costura do tempo, de cura pela palavra. Mas só vejo uma matéria quente agitando-se entre as mãos, que se afrouxam e deixam cair tudo, garfos, louças, imagens de outra cidade, outra época, outra pessoa.


Um jovem moreno acende um coquetel molotov enquanto alguém grava tudo e joga nas redes sociais. Não tem pudores, não esconde o rosto, está ali para resistir, fincando uma bandeira onde, uns séculos atrás, nessa mesma região, colonizadores fundearam suas embarcações e lançaram-se a ocupar o território dominado por índios, erigindo um forte e do forte plantando uma vila. Nascia assim o Ceará, fruto de violência e expropriação, com seus canhões apontados para dentro de casa.


Assisto a um vídeo e nele vejo meia dúzia de homens enfrentando a Polícia e lembro dos que acamparam no Cocó para impedir a construção de um viaduto: também lá houve uma refrega, mas de natureza diferente – o parque é vital para uma classe média ilustrada, que, por razões diversas, não se vê na peleja de agora.


É um enfrentamento desigual esse que travamos com o poder e com a memória: entramos para perder. O tempo passa em desfavor, e nenhum gesto é só heroico ou só criminoso – os feirantes não são mocinhos de cinema, nativos massacrados por cowboys; tampouco a retórica da requalificação é livre de ranço ideológico – no mais das vezes, é o carro-chefe de interesses vários, como os dos setores imobiliário e hoteleiro, que se travestem de benfeitoria para cercar o público com o privado. É assim que avançam aquários e outras ruínas arquitetônicas, tudo a pretexto de revitalizar o que já tem vida por si mesmo.


Passo a outra imagem, que mostra a rua revolvida, as pedras debulhadas como espigas de milho e, ao fundo, um policial acocorado, a medir bem onde deve acertar o tiro – se abaixo ou acima da linha da cintura. As performances em cena carregam sentidos diversos: tanto os movimentos de feirantes, dispersando-se aqui para se reagruparem acolá, enxameando-se como abelhas; quanto os das forças de lei, que progridem em bloco, unas, como a sugerir que a interpretação do que é correto e bom para uma cidade é sempre monolítica, sólida, uniforme.


Então o olho se detém no pavimento da via, tombado pelo patrimônio. As pedras toscas foram arrancadas como dentes de leite. Estão descaroçadas e empilhadas. Por ali passaram os bondes do passado, que ajudaram a transportar mercadorias do porto aos armazéns. Eram outros tempos. Era outra Fortaleza.


Quatro anos atrás, jovens peitavam os batalhões de choque para evitar que parte da mata do Cocó fosse extraviada. Nos intervalos dos confrontos, liam poesia, faziam saraus e tocavam violão. Agora, levas de encapuzados desviam a rota de ônibus e armam barricadas com galhos de árvores e pneus. Rojões contra balas de borracha. Há muita verdade nas repetições, desconfio.

 

Uma cidade luta contra o tempo para inventar o seu futuro, que está sempre aberto e prestes a se desfazer. Imaginá-la em 2040 ou 2099 é um exercício coletivo do qual não se pode excluir ninguém. A memória é uma matéria viva sempre em disputa. Nunca está assentada, como essas paisagens nos potinhos de areia. Nossa história é mais como a das dunas móveis, escrita pela força do mar e dos ventos.

Foto do Henrique Araújo

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