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Dia oficial da saudade
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Dia oficial da saudade


Descobri que agora há um dia todinho pra saudade. Não um dia pro amor, pro ciúme, pro sexo, esses sentimentos perfurocortantes. Mas tem pra saudade, esse ursinho de pelúcia quieto em cima da cômoda. Neste dia, a gente acorda e se pergunta: terei saudade do quê?


Funciona assim: às quintas-feiras, postamos imagens velhas, de 1986 ou 2009, não faz diferença. Marcamos a publicação com a hashtag “tbt”, abreviação de throwback thursday, que, em português, quer dizer algo como “quinta para voltar ao passado”. Está feito: você é oficialmente parte dessa fluida corrente de nostalgia.


Digo isso e imediatamente me pego chafurdando na saudade de quando não sabia o que significava #tbt. Ficava olhando essas três letrinhas patinando diante dos olhos mais ou menos como um cachorro assiste televisão, entre aturdido e curioso, feliz da vida só por não saber.


Mas aí fiz o que todo mundo faz: abri uma aba do Google e selei o pacto mefistofélico. Digitei TBT e troquei minha alma por conhecimento. Fui levado a páginas e mais páginas de explicações. Bateu, então, uma saudade do tempo em que uma dúvida de inglês sobrevivia por meses, anos até, e só era solucionada quando um primo voltava das férias nos Estados Unidos, pondo fim ao mistério. A gente era feliz não sabendo que não sabia.


Será que vem daí essa mania de sentir saudade da saudade? Um negócio meio Inception, sonho dentro do sonho. Não sei.


Uns anos atrás, eu podia estar escovando os dentes quando, sem avisar, a saudade enterrava as unhas nas minhas costas, fazendo com que suspendesse o gesto no ar e suspirasse, como o personagem de Viajo porque preciso, volto porque te amo: que saudade da porra. É uma frase que incendeia os cantos da casa, bruta e delicada. Nessa época, a saudade ainda era um bicho. Hoje, ela é um pet.


Mas isso é como as pessoas costumavam se sentir noutro tempo. Agora a saudade está mais pra filtro de Instagram, aplicativo mental ou peça de vestuário que jogamos sobre o corpo e saímos pra encontrar os amigos, como um pulôver ou uma calça jeans.


Logo quando comecei a escrever, num delírio megalomaníaco, me pegava frequentemente pensando na entrevista que eu jamais daria pro Jô Soares. Eu tenho saudade do Jô quando o Jô era bom e a gente ficava acordado até de madrugada só pra vê-lo na televisão.


A gente não tinha saudade da saudade, apenas sentia e pronto, retomava o que estivesse fazendo e não se importava de sair com os olhos vermelhos nas fotos de aniversário. E folhear os álbuns de fotografias servia mais pra lembrar de como a gente é ridículo do que pra levantar a nossa bola com mil curtidas.


Acho que essa é talvez a grande diferença entre as gerações pré e pós-Internet: antes, quase todo mundo saía mal nas fotos, e isso produzia um efeito saudável. Hoje é diferente, e só tem foto ruim quem quer. Tenho saudade das fotos feias. Eram tão bonitas.


Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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