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Chuva da saudade
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Chuva da saudade

 

O cearense já tava até conformado. O calor tinha voltado com tudo, e Fortaleza andava como a Princesinha do Norte na piada do Augusto Pontes, que brincava: "Uma vez fui a Sobral. Outra vez fui a Sobral. Nunca mais vou a Sobral". Éramos uma cidade grelhada. Eu levantava da cama de manhã e me sentia com a cara enfiada numa bacia de cozimento de mastruz. Saía do banho e estava suado. Ligava o ventilador e ele soprava quentura.


Definitivamente, os lençóis podiam voltar pro guarda-roupa. Os moletons dos matutos, pras gavetas. Com as noites bafejando mormaço da Cidade 2000 ao Acaracuzinho, era novamente tempo de dormir como Adão e Eva: nus. O maçarico ligado no céu torrava o fortalezense em todas as regionais.

 

O inverno tinha feito como o ônibus pelo qual esperamos a vida inteira no terminal: chegou e foi embora. Depois de cinco anos de estiagem, choveu muito em 2017. Tomamos banho de bica, corremos na rua de cueca, mergulhamos na praia dos crush e postamos tudo nas redes sociais. Mas agora acabou. Zé-fi-ni. Só em 2018, com a ajuda de São Pedro.

 

Mas aí, tão de repente quanto o sumiço das águas do açude Tijuquinha, volta a chover no estado, deixando a gente mais desorientado do que as galinhas da minha avó, que, tão logo o céu escurecia, punham-se agasalhadas num canto do quintal, achando que o dia tinha virado noite. Da janela do quarto, eu ria das pobrezinhas, só pra me sentir como elas neste momento.

 

O Ceará acordou sobressaltado: é quase junho, mas, pelo desenho e cor das nuvens, é como se fosse março ou abril, meses em que o estado sentiu o mesmo alívio que sentimos quando chega o quinto dia útil. Prum lugar castigado pela estiagem havia cinco anos, 2017 foi como um décimo terceiro, um ajuste retroativo, um abono fora de época. Nele voltamos a falar de açudes sangrando, barreiras se rompendo e cheiro de planta estalando de verde. No entanto, assim como o salário extra, o inverno também acaba. E o nosso acabou mesmo.

 

Até esse aguaceiro de segunda-feira pôr a gente melancólico pra burro. É uma chuva de despedida, tenta amenizar a Funceme, deixando a coisa ainda pior. Pensar numa chuva de saideira em plena segunda é um troço tão triste quanto uma crônica do Paulo Mendes Campos sobre o fim do amor. Não dá.

 

Pra afastar essa nuvem pesada, tento me agarrar à letra fria da explicação científica pro fenômeno: chove por causa de um negócio chamado sistema cavado de altos níveis, que, segundo entendi, favorece a formação de nuvens em toda a região nordeste. Nada de poesia, apenas a seca realidade de uma equação cujas variáveis se contam às dúzias.

 

Mas por que hoje? E volta a sensação de que essa chuva é mais do que um capricho tardio do vórtice ciclônico. O que as águas de maio anunciam? No que são diferentes das de março? Isso a ciência não responde. Isso eu queria saber.

 

Nunca chove assim, intransitivamente, feito o amor do Mário de Andrade, que é e pronto, não carece explicar. Principalmente no Ceará, chove por uma razão. Do outro lado da mesa, a ciência devolve: veja bem, pode ser que sim, pode ser que não. E há sempre a possibilidade de – e não completa a frase. A gente quer exatidão, mas ela fala de hipótese.

 

E a de hoje é esta: chove porque é segunda. Chove porque é fim de maio. Chove porque o inverno acaba. Chove porque a semana que passou foi infernal. Chove pra gente tirar de novo o lençol do guarda-roupa. Chove pra matar de saudade.

Foto do Henrique Araújo

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