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Ainda uma carta
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Ainda uma carta


A gente se põe a escrever achando que chegará ao final do mesmo jeito, conhecendo o caminho e parando o tempo que achar que pode. Mas nunca é assim. O domínio se esfarinha.


Queria escrever hoje o que não tivesse fim. Como em 1996, quando terminei um namoro e precisei andar de ônibus pela cidade. Ou em 2009, quando o casamento acabou e dei voltas pela rua do bairro que eu já conhecia tão bem. Aprendi a fumar andando em círculos. Ajudou, mas não funcionou. Isso foi em abril. De lá pra cá, choveu tanto que nem sei mais se é o tempo lá fora ou aqui dentro que deu uma piorada. Sei que escurece.


Uma carta de despedida é também uma carta de chegada. É um dessas ironias que a gente cria a pretexto de entabular conversa com gente estranha. É como um papo no elevador. Escrever para dizer que vai embora. Ou escrever pra falar que fica ainda. Ficar ou ir. Tudo em arte é uma separação, do corpo, da família, da vida.

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Li que García Márquez passou um ano e seis meses fora de casa para conseguir escrever Cem anos de solidão. Deixou pra trás filhos e esposa, que tiveram de se virar com menos de dois mil dólares enquanto ele estava longe. Empenharam móveis, arranjaram dinheiro com amigos e negociaram com vizinhos o aluguel. Tudo para que o Gabo criasse a epopeia mágica da família Buendía, que agora completa meio século de publicação. Valeu a pena?


Andaram dizendo que Belchior foi péssimo pai. Eu acredito. Estive no velório do cantor e passei quase todo o tempo observando o filho dele, que se mantinha distante do caixão, num canto da sala. Me surpreendi com a semelhança entre os dois: a mesma testa, o nariz aquilino, o rosto anguloso, os cabelos bastos nas laterais e uma calvície pronunciada. Pensei no meu próprio pai. Somos tão parecidos em tudo. Quis eu mesmo chorar o choro que o filho, em meio a tanta gente, não podia. Ou não queria.


Até que, perto do final, o rapaz, que tem a minha idade e deve ser como qualquer latino-americano, se aproximou e tocou o rosto do morto que era seu pai. A sala já quase vazia, poucos fotógrafos registraram a cena. Foi um desses momentos bonitos. Em casa, depois de um dia de trabalho, eu fui ao banheiro e chorei.


Tenho pudores de chorar, mas não de escrever. Domingo, por exemplo, pedi licença algumas vezes para ir até o cômodo mais silencioso de casa. Pensava na morte, nas dores que a gente carrega, nas dores que provoca, no amor, sobretudo no amor. Eu sou moço ainda pra chorar e amar tanto, pensei. Não era. Ficasse à vontade, ouvi Belchior cantando ao ouvido. O poeta tinha morrido, não sua poesia. Mas dói a separação. Do corpo, da casa, do afeto. É como um parto às avessas.


Chorava também por medo de ser péssimo pai. Choro ainda. Medo de acenar e o ônibus não parar. Medo de perder o amor que chega sem avisar e vai embora de repente porque a gente é esse corpo ferido, e um corpo ferido carece de explicação: não faz nada por si. Ele é como um rio, um bicho, um bando de pardais. Um corpo ferido tem medo, mas vai em frente.


Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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