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Neste ano eu não morro
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Neste ano eu não morro

Belchior eram seis: Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Desde o nome, então, o cantor e compositor apresenta-se sob a multiplicidade das máscaras, estilhaçado em identidades, todas igualmente verdadeiras: músico, pai, marido, cearense, amigo. E Belchior, que, a exemplo dos fenômenos que temos dificuldade de compreender, resultava da junção alucinada de tudo isso.


Não era apenas o homem que se refugiou na saudade, saindo em escapada quando se via atocaiado por uma dificuldade, existencial ou financeira. Não era só o vivente que arribava, à mercê da natureza. Nem somente o gênio de "A palo seco" e "Como nossos pais". Tampouco era um falsário cujas contas, quase sempre no vermelho, punham-no em desatino constante, obrigando-o a peregrinar, numa manobra de sumiço quase teatral, aparecendo aqui e ali para confirmar que vivia.


[QUOTE1]Belchior eram seis, pelo menos. Talvez mais. E cada um deles deixará saudade, uma palavra-síntese na sua obra musical. Vocábulo que faz as vezes ora de nostalgia, ora de coragem, numa gangorra de significados que, à primeira vista, são imiscíveis. Mas Belchior era isto mesmo: um grito apanhado no ar. Nele vivíamos a pertença - ouvi-lo é estar no Ceará, onde quer que se esteja - e o sentimento de desenraizamento - a falta de seu corpo era como o vazio que deixa o que se vai prematuramente. E Belchior foi.


O cantor tinha sobretudo saudade. Do passado e do que ainda viria. É essa falta que os fãs cearenses têm de elaborar a partir de agora. O lugar sem nome do canto torto feito faca, uma imagem poética que traduz à perfeição as muitas duplicidades que habitavam o seu cancioneiro: palavra de dois gumes, voz cortante, corpo-embarcação, sugerindo que se está sempre em rota, não importam as direções que se anunciem. Sem querer, falando de si, Belchior resumiu a capital cearense: uma terra de gente em fuga, tangida e chegada por precisão.


Hoje é domingo, dia em que muitos bares fecham em Fortaleza. Não deveriam. Por dever de ofício, deveriam abrir e receber Belchior. Porque serão muitos batendo à porta, todos latinos, todos sem dinheiro no banco e vindos do Interior. Expediente normal nos balcões, cerveja coalhando as mesas, música solta e encontro de amigos. É assim que se cultiva uma saudade. É assim que podemos voltar a imaginar Belchior como nosso dom Sebastião, o rei português extraviado na batalha, de quem nunca se saberá, exceto que se perdeu e nunca mais se encontrou.


Assim foi Belchior. E por isso os bares têm obrigação de suspender a folga e receber com generosidade quem pedir uma bebida e uma música e perguntar: quando ele voltará? Talvez o garçom responda: não voltará. E será duro ouvir que a saudade não passa.


Mas gosto de pensar que Belchior não voltará porque não foi embora. Sempre esteve ali, na Praia de Iracema, nas ruas do Centro, na boemia da Gentilândia, em cada cearense que levanta voo sem destino certo e encara uma roda viva. Está na música, na maresia e nos palcos, como esteve ontem, homenageado por uma banda formada por baianos e mineiros tocando em frente à Ponte Velha, na comunidade do Poço da Draga, ao lado de um esqueleto de projeto que, mal nasceu, já é ruína. Tudo, como ele, muito cearense.


Belchior eram muitos no mesmo corpo. Não à toa, no Carnaval festejamos num bloco que explicita essa condição: "Os Belchior”, conjugando singular e plural num mesmo nome. São muitas saudades e agonias. Escutá-lo é se surpreender numa reza íntima que todo cearense aprende desde cedo: ano passado eu morri, mas neste ano eu não morro. Não morreremos. Mas vai doer a falta.

 

 

Foto do Henrique Araújo

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