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Naquele tempo é que era bom
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Naquele tempo é que era bom

 

Fui incluído recentemente num grupo do colégio no Facebook. Antes disso, já havia feito parte de outro, mas no Whatsapp. Duraram poucas semanas. O mais recente foi o da faculdade, do qual também acabei me afastando. Em todos, recebi uma enxurrada de fotos velhas e lembrei de situações que tinham se perdido no tempo. Reencontrei rostos e os confrontei com os de agora: amigos que se casaram, têm filhos, trabalham, organizam festas de aniversário, cuidam da higiene dos alimentos, preocupam-se com a chikungunya e, entre uma coisa e outra, cumprem uma função de zeladores da memória coletiva.


Essa permanente atualização do que vivemos por meio de imagens que retornam é um fenômeno novo. Não muito tempo atrás, o passado era apenas o passado, e não essa nebulosa de memórias que se amoldam ao presente. Penso nisso e paro: será que estou me tornando uma dessas pessoas para quem a Farinha Láctea, a Coca e o Nescau de antigamente eram muito melhores? O sabão era mais concentrado. O Bombril durava mais. A calça jeans tinha mais resistência. As bocas do fogão corriam eras antes de enferrujarem. O xampu produzia mais espuma. Até os amores tinham prazo de validade mais generoso. Não eram como os de agora, paixonites que se consomem num tempo de cozimento do Miojo.


Talvez esteja me tornando uma dessas pessoas, sim. Um sinal disso é que, não faz muito tempo, me peguei exatamente como um taxista que, certa vez, deixou escapar num suspiro: o asfalto das ruas do tempo do meu pai é que era bom. Entendam: aquele homem tinha saudade do asfalto, essa camada de derivados do petróleo e brita misturados a altas temperaturas que recobre os pavimentos por onde circulamos todos os dias. Para ele, e aí está a graça da coisa, o asfalto antigo era mais sólido, durável, firme. Podíamos pisá-lo sem medo de afundar. Não esboroava como o de hoje, que não resiste a uma chuvinha e se enche de crateras.


Foi inevitável não me solidarizar. Sem querer, o taxista havia desvendado os mecanismos que tornam a memória uma Disneylândia subjetiva, onde saltamos de brinquedo em brinquedo ao longo de um dia que jamais termina. No fundo, o que ele estava dizendo era que a obsolescência dos objetos se relaciona com a da memória. E fez isso enquanto passava da segunda para a terceira marcha e anunciava o preço da corrida, que também não era mais o mesmo de anos atrás.


Naquele tempo, quando as coisas demoravam a morrer e seu uso atravessava gerações (todo mundo tem em casa um objeto que passou de mãos em mãos), o passado tinha feitio estanque, confiável. Agora, que os aparelhos quebram dois anos após deixarem as lojas (ninguém imagina um iPhone passado de avô para neto), a memória lembra o asfalto do taxista: é cediça, esfarinhando-se ao menor contato com a roda. A gente se fia nos objetos para lembrar, mas os objetos traem e as lembranças se perdem.


O problema é que, por causa das facilidades tecnológicas, passado e presente têm sido cada vez mais indistinguíveis. Bom mesmo era no tempo do meu pai: um passado de verdade, de raiz, e não esse passado Nutella que volta em imagens fantasmagóricas presas em nuvens e moduladas com filtros que conferem um grau maior ou menor de antiguidade à foto. O passado de antes era uma verdadeira acumulação. O de agora é artifício retórico. O passado de antes era autêntica nostalgia. O de agora é uma tecnologia a serviço do ego. O passado de antes era uma massa compacta. O de agora é maleável.


Mas talvez esteja sendo apenas saudosista e, como o motorista do táxi, suspirando ao lembrar do tempo antigo, aquele em que o asfalto era uma cobertura segura através da qual a gente caminhava sem medo de cair num buraco. Nessa época, a gente puxava um fio no novelo da memória, uma metáfora fabril para a natureza manufaturada do tempo. Hoje, não. A gente não puxa fio nenhum nem fabrica nada. Se muito, a gente assiste ao passado rolar na tela por streaming, como num parque de diversões visuais.


Foto do Henrique Araújo

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