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Meninas e meninos
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Meninas e meninos


O José Mayer tocou numa ferida. Sem querer, ou talvez querendo mesmo, tratou de culpar-se e à sua geração por abusar de uma mulher. Para o galã, o machismo é geracional, parte de uma cultura cujo início talvez esteja naquele “cheiro na pinta” que as mamães adoram distribuir nos meninos quando criança.


Em casa não era diferente. Primogênito, aprendi que o fato de ter nascido homem me conferia alguns privilégios. Num espaço repleto de mulheres, com tias, avós, mãe e amigas, o pau era o centro das atenções. Falo disso sem constrangimentos, mas profundamente convencido de que pouco ou quase nada mudou em três décadas. O pinto ainda é o reizinho do lar. É em torno dele que desfilam os valores da família tradicional.


Recentemente descobri que minha filha de três anos está se descobrindo. De vez em quando, toca o próprio corpo, o que acho natural e não encaro como um sinal de perversão ou desvio de caráter. Digo isso explicitamente porque, para muita gente, meninas que se tocam são fáceis, mesmo numa idade na qual ainda sequer têm discernimento para entender qualquer coisa.


O normal, nesses casos, é que meninos tenham toda a liberdade para se descobrirem. Enquanto o pipiu da menina é sacrossanto - a genitália feminina retém certa áurea de prenda a ser mantida em resguardo, quase como um tesouro que depois será ofertado sabe-se deus a quem -, o pau é instrumento de uso contínuo. É uma ferramenta. Aprendemos isso desde cedo. Meninas se sentam na carteira de forma comportada. Normalmente, com as pernas fechadas. Meninos, à vontade. Meninas precisam esconder. Meninos, exibir.


Ora, cedo aprendemos que mostrar o pinto é legal. É massa mesmo. Numa idade em que não temos autoridade para nada, só governamos o próprio pênis. É, portanto, símbolo de poder. É sinal de uma virilidade que, quanto is rápido surgir, melhor, porque espanta a ameaça de que o rapaz seja veado. Então, tratamos de mostrar o pinto a toda hora. Fazemos isso na escola, na hora do recreio, ou na rua, durante uma pelada. Se alguém passa e briga, exibimos o dito-cujo, ainda que pequenino. Urinamos ao pé do poste sem medo de sermos molestados - no máximo, levaremos um cascudo pela imundície. Coçamos o saco com galhardia em qualquer lugar. Por tudo isso, lidar com o próprio corpo é uma experiência prazerosa. Temos um pau, e isso é maravilhoso.


Com a mulher dá-se o oposto. A descoberta feminina é quase sempre uma ameaça à ordem doméstica. Os pais se incomodam. Os irmãos também. Afinal, é no corpo que se exerce a maior liberdade, a de dispor de si como convém. Meninas, no entanto, esbarram num tabu desde os primeiros anos: a genitália é intocável. Há um medo difuso de que elas encontrem prazer excessivo explorando áreas do corpo, o que levaria a uma liberalidade na vida.


Hoje, como pai de uma menina, espero apenas que a desculpa do José Mayer não seja aceita. O problema não são os quarentões ou cinquentões cujo ideal de masculinidade se espelha no Fernando de Presença de Anita. Estes, uma hora ou outra, passarão. O problema é o time de garotos em um campeonato de futebol que usou o emblema ofensivo como escudo da equipe. O problema são os ginecologistas recém-formados posando para fotos de forma abusiva. O problema é a reação do público ao caso do agora ex-BBB expulso por agredir a namorada. O problema é a hashtag “Força, Marcos”, assunto mais comentado no Twitter nas horas seguintes à exibição do programa.


O ator global pode até dizer que aprendeu com o episódio e se emendar. Mas, para cada garanhão de novela que se endireita depois de uma mobilização feminina, há muito potrinho engordando o seu machismo em casa mesmo. Às vezes, com uma ajuda do papai e da mamãe.


Foto do Henrique Araújo

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