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Livros e sapatos: modos de usar
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Livros e sapatos: modos de usar

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[FOTO1]A Bienal do Livro é uma festa e uma feira, duas palavras avessas a qualquer disciplina. Exatamente como a leitura e a relação apaixonada que desenvolvemos com os livros. Daí que é normal que um mesmo autor convidado também seja visto sobraçando sacolas plásticas e os leitores, usualmente de cara enfiada nas histórias, numa postura monástica, estejam mais falantes que nunca, transformando cafés em programas de auditórios.

 

Há um caráter duplo nisso de juntar as pontas da cadeia de livros num mesmo lugar: editores, autores e leitores. Primeiro, é perceber como se acomodam uma gravidade e um certo ar descompromissado. Gente desarrumada e gente metida nas melhores roupas. Um desleixo e um aprumo no falar e no vestir que são a marca de um evento cujo dress-code não se define a priori por regras de etiqueta, mas que não lhes escapa também.

 

É uma mistura curiosa essa de quiosques expositivos e salas apinhadas à espera de que um escritor ou escritora se sente numa cadeira sob holofotes e desate a falar sobre o que muitas vezes apenas intui. Como se, ali, buscássemos o sagrado da oralidade, a palavra capaz de estabelecer um elo entre pessoas numa comunidade; e o profano das relações mercantis mal-disfarçadas por certa licença do bom-gosto – estamos comprando, sim, mas compramos livros.


E livros não são como sapatos. Valter Hugo Mãe, que usou sandálias para falar na sua gramática de afeto e causou uma pequena comoção no Centro de Eventos ontem, sabe disso. Numa bienal, vamos às compras e à igreja ao mesmo tempo. Cultuamos dois deuses. Feita durante a Semana Santa, a natureza dual da festa se acentua ainda mais.

 

 Os escritores já foram gurus, gente cujo ofício era anunciar uma verdade quase divina sobre a qual restava pouco senão concordar. Eram, então, seres mitológicos. Hoje, não. Perderam muito dessa áurea sacrossanta, e, quando muito, murmuram uns pitacos sobre política e outros assuntos nas redes sociais. Sua voz foi gradativamente substituída pela cacofonia de aplicativos de comunicação instantânea. Nos jornais, as críticas passaram a resenhas e a as resenhas, a comentários ligeiros sobre lançamentos de romances. Apenas um ou outro autor consegue furar esse bloqueio, que vira muralha quando se soma aos péssimos índices de leitura dos brasileiros.

 

Talvez por isso não deixa de impressionar que os escritores possam reunir em torno de si gente suficiente para lotar salas e mais salas. Pessoas que foram ouvi-los, apenas. Isso desautoriza qualquer vaticínio pessimista sobre a morte dos livros e a falência das palavras. Os livros vivem. As palavras também.

 

E é para isso que esses autores e autoras estão lá: eles são a prova da materialidade e do poder transformador do livro. É certo que também estão zanzando pelos corredores do galpão refrigerado enquanto aguardam sua hora de subir ao palco e dizer a que vieram. É o que esperam os leitores: um contato mais íntimo não somente com as obras, mas com seus inventores. Foram à feira, mas também à festa.

 

E os escritores sabem disso. Porque também eles estão ali de modo dúplice: sagrados e profanos. Numa hora, desfilam entre pessoas comuns desempenhando as tarefas mais corriqueiras, como passar um cartão numa máquina e responder se crédito ou débito. Noutra, estão dizendo a uma plateia silenciosa como em oração que escrevem não para matar deus, mas para fazê-lo mais presente. Dessacralizam-se no banal e investem-se novamente de beatitude quando tomam a palavra entre as mãos. Estão na feira, mas também num templo.

 

 

Foto do Henrique Araújo

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