Logo O POVO+
A língua do cearense
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

A língua do cearense


Algumas expressões são incríveis por si mesmas. Pérolas, como se diz, ficam ricocheteando dias e dias no cocuruto, até que nos damos conta de que elas carregam algum segredo. Não estão no mundo gratuitamente. Por exemplo, ia andando pela avenida 13 de Maio outro dia quando ouvi alguém dizer que amava fulano de paixão.


Num estalo, eu parei e ri. Quis atalhar a conversa da moça e perguntar o que diabos ela queria dizer. Primeiro, como era amar de paixão, se o amor vinha primeiro ou a paixão. Ou, hipótese mais improvável, se se tratava de sentimento novo, um afeto no limiar de se tornar amor, mas ainda paixão. Ou o contrário: já amor, mas ainda paixão. Apressei o passo para tirar dúvida, mas a garota já tinha saltado de assunto (outra especialidade cearense).


Restou a confusão, que só não era menor do que a que senti ao ouvir pela primeira vez a esfíngica frase “tem, mas está faltando” num armarinho da minha rua. O que o vendedor queria dizer? Que tinha o produto (um carretel de linha para arraia), mas não sabia onde estava? Que até tinha, mas não queria vendê-lo? Que teria, mas não naquele momento (nesse caso, não seria melhor dizer que não tinha?)? Que poderia vir a tê-lo? Que costuma ter, mas não naquele dia e hora?


Assim como o “amar de paixão”, o “tem, mas está faltando” concentra em si toda a áurea de improviso do espírito cearense. Forjada numa cultura de escassez, ela é um drible na falta. É uma dissimulação e um truque de prestidigitação: simula a presença do objeto (tesourinha, papel almaço, canetinha, alfinete) que não está ali. Supre uma carência com a palavra. Pode parecer que não temos, mas temos. Não temos água, mas não morremos de sede. Não temos tantas riquezas, mas nos viramos. Não temos fartura de nutrientes no solo, mas temos as praias e os ventos.


Não sei se fui claro. O cearense nunca é totalmente claro. Por exemplo, nunca se pode dizer que ele irá a uma festa ou se está perto de chegar a um compromisso. Entre nós, mesmo as distâncias são relativas, e se alguém garante que está chegando, pode ter certeza de que acabou de sair de casa. Nada mal para um povo cujo grande mito, o da índia Iracema, tomava banho no sertão de manhã e, horas depois, era vista à beira da Lagoa de Messejana, a léguas dali.


O cearense é mágico. Daí que sua linguagem esteja nesse meio-termo, no chiaroscuro, refugiando-se nas ideias mutantes. Expressões populares como “amar de paixão” e “tem, mas está faltando” se aproximam da experiência do Gato de Schrödinger, aquele paradoxo quântico que se sustenta na incapacidade de determinar com rigor o estado de qualquer coisa. Grosso modo, algo nunca é de fato: ele está sendo. Quando dizemos que é, já passou. No máximo, podemos supor que estará ali, mas sem a certeza de onde estará e quando. O bodegueiro sabia disso quando falou que tinha, mas não tinha o carretel.


Ambulante em suas próprias ideias, amador mais que profissional, desgarrado das noções fechadas, um cientista das fórmulas intercambiáveis e dos arranjos fluidos, o nativo pode ser descrito como um Bauman caboclo: é líquido e sólido ao mesmo tempo. Tanto que, em nossa comunidade linguística, a realidade acaba se dobrando à vontade. Não deve ter sido por acaso que Einstein provou no Ceará um dos principais pressupostos de sua teoria: que tempo e espaço são relativos. Pelo menos em Sobral, temos certeza de que são.


Para quem é tangido por secas e ganha o mundo como ave de arribação sempre que uma calamidade se avizinha, nada mais natural que os modos de falar espelhem essa indeterminação quântica. Dá um nó na cabeça, eu sei, mas é assim que funciona a língua do cearense. A gente ama de paixão, e todo mundo se entende. A gente tem e não tem, mas ninguém sente falta. A gente demora a chegar, mas sempre chega.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?