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O tempo da Chuva
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

O tempo da Chuva


Cinco anos sem chuva deixam marcas profundas na terra e no corpo. Nesse tempo, não foram apenas os açudes cearenses que secaram e a terra que se calcinou. A língua foi afetada e se transformou, como a lavoura que se cresta à falta d’água. A seca mergulhou no esquecimento palavras de abundância: tempestade, toró, pau d'água, sangradouro, todas pertencentes a uma gramática do excesso. Vê-las agora nos assusta. É como deparar com alguma criatura antediluviana, um animal abissal. A chuva no Ceará é uma história do velho testamento.


Mas é exatamente isso que tem acontecido. Chove quase todos os dias. E a língua da gente vai se reinventando. Para nós, bonito não é apenas quando chove, mas quando transborda, alaga, esborrota - o cearense tem verbos diferentes para cada um desses estados de extravasamento. Comum a todos, a mesma ideia de fartura. Quer um exemplo? Experimente visitar qualquer casa de Interior e descobrir que felicidade é fartar-se - da comida e da presença do outro, com as visitas se demorando por horas (às vezes dias, quando os anfitriões e os de fora já começam a se desentender). Quando chove, somos uns. Se faz sol, somos outros.


Os dias têm sido de festa. Vamos deixando de lado esse léxico de escassez e precisão que se grudou à garganta durante o estio. Passamos a empregar de novo as palavras gordas - encharcado, estuporado, breado. E nos surpreendemos com a peculiaridade de tudo. Brear-se, por exemplo, não é apenas molhar-se. A expressão tem uma qualidade afetiva que a distingue de qualquer sinônimo: carrega uma rejeição a algo que, no fundo, queremos bem, fundando-se numa dualidade atávica. É a mãe que chama o filho de "peste ruim" antes de beijá-lo na testa. É a avó que se vira pro neto e sapeca: eu amo esse cão. Afetos opostos e conjugados.


Assim é o cearense em sua relação tempestuosa com as pessoas, a cidade, a chuva. Quase tudo que fazemos padece dessa oscilação radical: ora mais a um extremo, ora mais a outro, num equilíbrio circense. Estamos sempre nessa corda bamba, como se alimentássemos a ânsia da arribação, mas sem a coragem suficiente de desatar o nó. Talvez chova no molhado ao dizer isso, mas nossas raízes afundam dedos num terreno cristalino da memória: o nosso solo não é poroso. Precisamos cavar sempre mais para lembrar. Entre nós, o esquecimento é regra. O tempo custa a assentar. Sem tempo, não há memória. Sem memória, a palavra falta.


Às vezes, ouço muxoxos na rua: gente imprecando contra a chuva, que, nem bem chegou, já parece excessiva, um contratempo a ser evitado, feito a visita querida que, três dias depois de se aboletar em nossa casa, fazemos de tudo pra tanger porta afora.


Às vezes, porém, encontro gente como que hipnotizada por essa água toda. Surpreendem-se com esse palavreado. É uma chuva fresca, novidadeira, que veio quando nem era mais esperada. De repente, chega. Muda a paisagem, o verbo, o tempo. Instaura uma nova ordem de afetos e coloca à mesa nomes de abastança. Entra pela cozinha, como se faz no sertão, e vai parar no batente da calçada. É uma chuva fora do tempo. É uma chuva no tempo certo.


Foto do Henrique Araújo

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