Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Minha filha descobriu o medo. Prestes a completar três anos, agora inventa mil razões para não ficar sozinha no quarto ou ir ao banheiro. Precisa cuidar do urso de pelúcia. Quer ajudar na cozinha. Finge concentração num quebra-cabeças. Se pede para fazer xixi e a deixo no sanitário, logo emenda um “papaizinho, fica comigo” (também descobriu a beleza mágica dos diminutivos, com os quais borrifa todas as horas do dia com chapeuzinhos, caderninhos e bolachinhas).
Acho que a culpa foi minha - tanto pelo medo quanto pelos diminutivos. E consigo até lembrar do dia em que os apresentei. Foi num domingo, perto da hora de dormir, esse momento em que os pais finalmente entregam os pontos depois da longa batalha que é o fim de semana e, totalmente sem forças às 21 horas, cerram os olhos de cansaço por alguns segundos. Pois é nessa fração de tempo sem vigilância que os pequenos descobrem que há um mundo invertido, como na série Stranger Things.
No nosso caso, esse mundo era um filme na TV. Um pouco antes de cochilar, decidi que assistiria O senhor dos anéis enquanto a Ceci se distraía com bonecas, mas bastou aparecerem Gandalf (“vovozinho) e Frodo (“homenzinho”) para que um estalo se desse no seu juizinho: aquilo era um mundão se comparado ao seu mundinho. Era a Terra-Média. Não as paisagens rosas e azuis de Peppa Pig nem as cores saturadas de O show da Luna. Era a geografia pestilenta de Mordor.
A essa altura, com o papaizinho estirado no chão vocalizando sons guturais que repercutiam nas paredes do apartamento, minha filha conjugou a temida combinação de medo com diminutivo. Fez isso ao pronunciar reverencialmente uma palavra que já usara algumas vezes: “macaquinho”. Foi assim que, entre a admiração e o pavor, passou a se referir a Sméagol. Acordei nessa hora. O estrago, porém, estava feito.
Na TV, eu via Gollum esgueirar-se por rochas enegrecidas, uma criatura atormentada e retorcida em sua dor. Para minha filha, porém, Gollum/Sméagol era o “Macaquinho de calcinha” – macaquinho por seus modos simiescos de locomoção; e de calcinha porque, de fato, o personagem cobre suas vergonhas com o que parece uma calcinha. Aposto que Tolkien não esperava por essa.
Quis acreditar que se tratava apenas de curiosidade e que essa exposição à figura diabólica do personagem não a afetaria. Tudo logo seria esquecido. Mas não foi. No dia seguinte, precisei acudi-la quando ficou sozinha. No outro, não quis deitar na cama com a luz apagada. Também passou a evitar o corredor mais ou menos como eu um dia evitei o quintal de casa depois de conhecer Freddy Krueger. Tinha algo errado. Eu precisava agir.
Mas só consegui me afligir. Meu coração de pai fez o que um coração de pai mais gosta de fazer: culpou-se. Eu me apavorava ante a perspectiva de haver traumatizado precocemente minha filha. Eu me sentia o próprio Saruman. Não era um pai exemplar, do tipo que se fantasia de coelho e leva chocolates na Páscoa numa cestinha de palha. Eu era um pai que dormia e esquecia a filha diante da TV ligada num filme com orcs, magos e dragões travando uma guerra do bem contra o mal. Isso não era nada glorioso.
Súbito, porém, tive uma iluminação. Lembrei da Cuca, do Sítio do Pica Pau Amarelo, que me punha tanto medo a ponto de fazer xixi na cama. A Cuca estava para mim como Sméagol agora estava para minha filha. Nessa hora, senti que havia transmitido para ela mais do que meu próprio sangue. Recordei então de uma frase que li: repassamos aos filhos principalmente os nossos medos. E pensei em dizer que todo medo passa. Um dia, quando menos esperamos, rimos dele.
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