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Horizonte de aventura
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Horizonte de aventura


A gente vai se desapegando da aventura. O tempo passa, e essa condição de criança se mostra inconciliável com certa rotina de adulto, que requer previsibilidade de ações e estabilidade emocional. Um homem ou mulher produtivos não se dão ao luxo de se gastarem em afetos desmedidos. É norma do maduro não estar à mercê do risco. Estão no mundo para o que há de movimento uniforme. Desenham mais retas que curvas.


Penso nisso apenas porque ontem morreu um escritor de que gosto. O nome dele é João Gilberto Noll. Tinha 70 anos. Antes de ontem estava vivo e escrevia. Talvez até se apaixonasse. Hoje, está morto, e de tudo que deixou pouco se saberá senão por meio de seus livros e do rastro que fica quando alguém vai embora.


Mas não quero falar da obra de Noll, um encontro inusual de fronteiras entre escritas de natureza diferentes. Quero falar de uma frase com a qual acabei topando: “Escrever dentro do horizonte da aventura”. Foi postada pela poeta Ana Martins Marques. É uma frase de Noll. Mais uma fé do que uma certeza.


Transpus as palavras desse credo para o presente, de modo que ficou assim: viver dentro do horizonte da aventura. As palavras cintilam e cortam ao mesmo tempo. Alumiam o caminho porque parece evidente que a gente só pode estar no mundo dentro de um plano de aventurar-se sem mapas por rotas que não são as de sempre. E afiadas porque têm a capacidade de cortar nossa vida em fatias bem finas para que possamos vê-la contra a luz.


E o que vemos? Um horizonte de aventura? Ou um tempo domesticado a serviço das horas de uso? Vemos a fita métrica medindo passos que saem de casa e chegam ao trabalho, com poucas alterações de roteiro? Ou vemos o que Noll chama de expectativa de encontro com o que não se sabe que vai encontrar?


É a noção de aventura que me interessa mais. Associada à de escrita, uma atividade cujo fim escapa ao tangível do que é prático, a aventura foi se convertendo progressivamente em algo negativo. Quando é empregada no dia a dia, normalmente indica o caráter de inconstância ou falta de propósito. Uma conclusão possível: só se tolera a aventura quando plasmada em arte, ou seja, quando mantida distante por representação. Perto, aventurar-se incomoda por sua natureza imprevisível. Longe, é uma experimentação disciplinada a que podemos nos entregar com segurança.


Assim, não se vive a aventura como experiência, mas como fruição estética. A vida, nesse caso, é eliminada como possibilidade de admiração e espanto. Viver a vida como arte seria contraproducente, arriscado. Daí o vocábulo pejorativo: aventureiro, que designa o que não tem compromisso, seja com o trabalho, seja com afetos.


Mas aí vem o Noll e fala que a escrita se realiza plenamente apenas quando vista dentro do horizonte de aventura. Acho que ele, por ser quem era, não separasse vida de obra, livros de amores, horas de sono das de trabalho. Eram tudo a mesma hora, todos os corpos no mesmo bailado alucinado que buscava imprimir a seus livros, povoado de caracteres errantes, uma epopeia doméstica narrada sempre ao miúdo, colada à pele.


A aventura, para ele, era um contato permanente de pele contra pele. Ficção como uma fricção. Vida como invenção. Invenção como realidade.


O escritor queria a dança. Queria afagos. Isso não se disciplina no curso da vida. O controle tem um custo afetivo alto. O repouso também. A reta pode consumir mais combustível que a curva. Numa caminhada, o acidente pode significar mais sorte que azar. Tudo depende do modo como vemos as horas: se devotadas à natureza do não sabido ou regidas pelo conhecido. Tudo depende do horizonte: se fechado à aventura ou aberto ao raio que atravessa o céu claro.


Foto do Henrique Araújo

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