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Deixa vir a grande confusão
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Deixa vir a grande confusão


O golpe não é apenas que o Carnaval tenha acabado. É que fevereiro terminou. Lá se foi esse mês breve, feliz, inteiro festa e dança, um haikai no calendário de meses que se arrastam por páginas e páginas de uma prosa árida, feito março, o demorado. Mês que cumpre rigorosos 31 dias. Sem folia, sem nada a contar além das horas de trabalho. Apenas um intervalo entre o Carnaval e a Semana Santa.


Tem o feriado de São José, é verdade. Dia milagroso. E, se chove, é de uma beleza tamanha, a crença e a ciência se encontrando nas ruas e nos campos, o lavradio de nossas almas secas finalmente umedecidas. É bonito, diria o querido professor Gilmar.


Mas São José sozinho não salva a lavoura. No restante do tempo, março é uma conversa encompridada porque o interlocutor não percebe que a gente já bocejou uma dúzia de vezes e fez menção de arredar pé outras tantas.


Principalmente, e me perdoem os aniversariantes de agora, março é um choque na economia de afetos expandidos durante o Carnaval. Uma anestesia, banho gelado na embriaguez, cabresto na paixão. É o meteoro. Vocês pediram. Ele está aí.


As demandas batem à porta. Aulas, trabalho, academia, a rotina escolar engrena, os estudantes se põem às carteiras, as ruas se enchem de carros, o trânsito colapsa. É quando todo mundo se dá conta de que 2017 finalmente começou. Não tem depois do Carnaval. Já é depois.


Março toma para si a tarefa ingrata de expulsar os últimos da festa. É o garçom que chega para fechar o bar, despachar a saideira e cobrar o estrago. Sisudo, cansado, certo de que o prazer tem hora para acabar. E é com indisfarçável felicidade que março anuncia: acabou a putaria.


Apenas três dias atrás, estávamos soltos na buraqueira da cidade – a metafórica e a literal. Éramos um híbrido de suor, purpurina, bebida, pernas e bocas. Tudo um corpo só. Hoje, somos criaturas empertigadas usando crachás e pastas, segmentados, distribuídos em categorias e horários, fabricados para o funcional. Não mais o ritmo, mas o algoritmo. São 11 meses de disciplina e apenas um de desforra. Quando a gente começa a pegar o jeito, o juiz apita o fim do jogo. Março é esse árbitro que jamais prorroga o prazer.


Mas é a vida. Resta pelo menos um alento filosófico. Ao fim e ao cabo, todos sabemos que os meses se igualam em suas porções de felicidade e modorra. Logo, março é também favorável ao amor, se há amor. E aos beijos, se há beijos. Nele há segundas-feiras calorosas como as de qualquer temporada. E manhãs de terça e quinta tão cheias de sonho. E tardes de sexta espichadas pela vontade de estar.


Março é o começo. Estamos às portas – mas do quê? O regime do Carnaval desmantelou a velha ordem. É outra idade, agora. É outro tempo. A Bastilha caiu.


Novembro é espera. Dezembro é suspensão. Janeiro é expectativa. Fevereiro é exceção. E é um milagre que haja vida depois da festa. O momento é de inventar uma riqueza para as horas banais. Um amor para o dia a dia. Uma poesia dentro do tempo prosaico. Prodigalizar a bem-querença.


É também nova oportunidade de voltar às resoluções de ano novo, aquelas esquecidas nas gavetas de janeiro e fevereiro. Como numa segunda chamada da prova que perdemos, revisitamos a lista de desejos. E o que descobrimos? Que ainda é tempo de colocar as cartas para o futuro e, como diz a Fernanda, uma poeta de palavras e gestos, esperar que venha a grande confusão.


Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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