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Ponto cego
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Ponto cego


Impossível estar fora do alcance hoje em dia. Falo de viver o extravio como uma ausência, um escape ou uma corrida à margem. Tantas câmeras requerendo presença constante. Todo o estirão da avenida Beira Mar é coberto. A cada esquina, um grupo de turistas fotografa. O vendedor de coco, de costas pro mar, faz uma selfie e envia pra namorada. Um ciclista sorri para o celular enquanto pedala. Prédios que se espicham e maresia que corrói. Tudo um equilíbrio incrível entre o postiço e o natural.


Fortaleza é um xadrez de ruas. Coisas do Adolfo Herbster e do positivismo, todos sabem. Arquiteto, calhou de inventar para a cidade um jeito de conter o espanto, colocando a disciplina a serviço de antever o imprevisto. Aqui, a reta é alarme contra a transgressão de normas. Sesmarias urbanas dividem pobres e ricos. A aldeia desenhada em seu miolo para que tudo esteja à vista, mas não em diálogo. Contato visual, mas não troca. Proximidade, mas nunca familiaridade.

Tudo vasto, mas desocupado.


Os canhões no forte apontados não para o mar, de onde se supunha viessem as ameaças, mas para os de dentro – os flagelados e outros desvalidos. Um professor contou essa história em sala de aula. Nunca esqueci. Disse que está nos livros. Verdadeira ou folclórica, explica um bocado do nosso espírito. Exclusivistas, gostamos do cercadinho. Tudo perde a graça se “misturado”. De blocos de Carnaval a aeroportos, as aglomerações só são boas se selecionadas.

Como as bolhas de amigos. Apenas o catálogo de gostos e posses.


Sobre isso, reparem em duas casas pequenas quando estiverem na rua Lauro Maia. Vizinhas, diferem uma da outra apenas em detalhes: uma de muro baixo, outra alto. Uma bordejada por concertina, a outra por árvores. Uma azulejada, a outra pintada de rosa ou azul. Uma avarandada, a outra avançando sobre o muro. Lado a lado, talvez nunca tenham conversado. Em qual delas se demorar? De qual sentir saudade? Onde descansar a vista?


Ouvi essa expressão ainda menino. Descansar a vista é um exercício de corpo inteiro. Lembro quando a mulher (não recordar do seu nome é tão revelador dos costumes de então) que trabalhava em nossa casa dizia que, à noitinha, sairia para “descansar a vista”. Dizia isso e ria, como a admitir um jogo cujas regras apenas ela soubesse.


Era uma fuga consentida. Um extravio de que meus pais sabiam, mas toleravam.

Ali, na boca da noite, a mulher encontrava o seu ponto cego e se perdia. Sempre me perguntei sobre o que ela faria naquelas horas. Punha os olhos numa bacia como fazia com a louça do almoço? Ou envolvia tudo em trouxas de roupa? Fechava e mergulhava em repouso, sentindo o calor da noite?


Até que um dia descobri. Aquela mulher ia até o bar. Lá, tomava uma cerveja e jogava baralho com homens. Assim, descansando a vista, demorava-se num moreno troncudo que a abraçava depois, às escondidas, numa esquina projetada por um arquiteto qualquer em cujos planos de engenharia jamais havia existido o beijo da mulher que trabalhou em minha casa.


Aprendi, então, que a planta da cidade não é a cidade. A cerca isola, mas não afasta. A câmera capta, mas não revela. O muro separa, mas não cessa. As retas e os espigões de uma paisagem árida dão a impressão de estar de posse da vida.

Mas não são a vida. A vida é o que acontece na esquina, quando a noite cai ou o dia amanhece, e alguns de nós resolvem que é uma boa hora para descansar a vista.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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