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Entre o meteoro e a folia
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Entre o meteoro e a folia


Não sei vocês, mas acho muito engraçado que a gente passe o ano inteiro desejando ardentemente dois eventos antagônicos em seu alcance e nas suas consequências práticas: o meteoro que destruirá tudo e o Carnaval que irá repor tudo. Definitivamente, o brasileiro não se ajuda.


A cada declaração infeliz ou atestado de burrice de algum ministro do Temer – o mais recente foi o vexame de Roberto Freire, que se perdeu na lavoura de arcaísmos da velha política –, rogamos para que o meteorito se aproxime. Compreensível, até. Mas ele nunca vem. Aí aparece um espertalhão russo pra dizer que agora, sim, vai ter colisão e vamos virar paçoca de gente. É inadiável. Para tudo ser desmentido na quarta-feira por algum cientista insensível. Nada de meteoro, por enquanto. Conversem entre si mesmos nessa pândega chamada Brasil.


O jeito é pular Carnaval, então. E aí vamos pelas ruas, girando em chaves opostas (felicidade e tristeza, endinheirados e empobrecidos, antigos e novos), cientes da nossa divertida condição de animais quase extintos – ou pós-extintos. Afinal, não sabemos se o que vivemos é a pós-vida ou a pré-vida. Entre nós (a pessoa verbal e o substantivo), o antes e o depois são a mesma coisa. Dançamos no sábado, no domingo, na segunda e na terça – os mais atirados continuam na quarta e até na quinta. Os radicais prosseguem na sexta, emendando a farta semana com o fim da semana, numa espécie de oroboro carnavalizado, a cobra que engole o próprio rabo, simbolizando o infinito. O brasileiro não tem limites.


Não à toa, nossa utopia suprema é a festa sem fim. Que, em última instância, é uma espécie de volta ao paraíso. Se a expulsão bíblica é a narrativa da perda de unidade do homem com a natureza, o Carnaval é a possibilidade de retorno. A gente festeja para se sentir novamente conectado com o sagrado. Me pergunto se o pessoal tem noção disso quando está no mela-mela do Aracati. Se sabem que, ao pé da letra, a folia é a religião por outros meios. Se entendem que, quando atiram uma mancheia de fécula de mandioca no outro ou bebem até cair no chão, estão refazendo nossa trajetória edênica. Se compreendem que, quando agacham, estão buscando uma transcendência.


Ilustro a ideia com outra curiosidade. Lembrem-se do bordão que marca as transmissões televisivas da festa: não tem hora pra acabar. Ora, se não tem hora, o tempo está abolido e o que resta é um continuum hedonista. O apresentador não está mentindo. Talvez sem querer, ele sintetiza o espírito da coisa toda: a folia quer começar, mas não cessar. Quer adiar o encerramento. Na realidade, a festa termina, sim, mas é como se não terminasse. Porque, mal encerrado o pano no teatro dos prazeres, retomamos a contagem regressiva para o Carnaval seguinte.


Nesse bloco do Oroboro, o fim é o fim aparente. O novo é a encenação do velho. O Freire que atira perdigotos em Raduan Nassar é o mesmo coronel do Brasil antigo. O ministro que assume a Corte é o mesmo capacho dos poderosos d’antanho. A sabatina é apenas a repetição de outros rituais de troca de mando. E assim emendamos os tempos: passado e presente. E disso resulta o futuro: tortuoso e macunaímico. O que não muda é nossa aptidão para conciliar extremos: o brasileiro quer a apoteose infinita, mas também o cataclismo imediato. Ou a festa não terá hora ou será interrompida por um apocalipse. Não tem meio termo. É realmente um povo engraçado esse que nos coube ser.

 

Foto do Henrique Araújo

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