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É ainda fevereiro
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

É ainda fevereiro


É fevereiro e tudo se inventa, tudo é pretexto, nada é o que é. Do que sabemos e somos, quanto é criação e quanto é real? E, nesse real, quanto há de fé, de querer que aconteça, de apostar no vazio até que se preencha? Quanto se ignora até que finalmente chega? Quanto se espera até que aparece? Fevereiro é mês propício ao que tarda. É estuário do acumulado de tanto tempo, que não lembramos mais como era.


É também hora de andar às quedas, como os bêbados do Carnaval, numa geometria de incerteza, trocando passos com o acaso e batendo boca com o vento. Como correr no meio-fio e tropeçar, fevereiro é feito para a experiência da tainha, esse mergulho que a gente dava nas lagoas e açudes. Era simples: corria-se metro e meio, dois, juntavam-se os braços, de modo a alinhá-los com a cabeça, e, formando uma seta, saltava-se na água. Éramos peixes. Pouca espuma, muita profundidade.


Então fevereiro é abismar-se. E há mesmo uma pedagogia nessa destemperança típica do período. Às vezes, o mundo carece de assombro. Falo de susto, aparições, razões sem razão que irrompem no meio do dia ou no lusco-fusco, nessa hora tardinha, como as visagens que minha avó jurava ter visto no quintal de casa quando éramos meninotes. Era tanta a certeza da velha Maria que, um dia, cri no que via. E o que via era também o que sentia. Vi minha vó paterna, de quem morria de saudade, ao pé de uma bananeira ainda miúda, folhosa, chamando pra brincar. Eu supus que amava. E amei a outra velha como se fosse verdadeira.


Fevereiro é miragem, mas miragem é só invenção? Ou é também real? Quanto há de fantasmático na ciência de acreditar que tudo tem um lado certo e o avesso é sinônimo de malfeito ou contrário à norma? Fevereiro é esse outro lado, um pano revirado, um colchão posto a quarar dos suores e fluidos do corpo.


É um desses meses que alavancam, não se sabe pra onde nem por quê, apenas que levam adiante, num tectonismo mais pra dentro que pra fora. Placas que se chocam silenciosamente. Pouco ruído, muita energia. Não é que seja um mês próprio ao invento. É mais para fazer tudo à revelia. Se punha o pé esquerdo no chão depois de acordar, agora farei com o direito. Se me pintava antes de ir ao trabalho, irei ao natural. Se era calada durante o amor, sufocando obscenidades, passei a falar depravações ao ouvido.


É um avesso não apenas como é se travestir, pôr-se de homem se mulher ou de mulher se homem. É um hiato na disciplina. Talvez mais: é reinvenção da disciplina. Uma suspensão, temporária ou definitiva, de todo dispositivo prisional: ciúme, vaidade, posse. Sai o malquerer fantasiado de bem-querer. Entra o afeto bruto, desmascarado.


É tempo em que cada um, a seu modo, calha de desejar um mundo em festa para si e para os outros e, como minha avó no quintal de casa, encanta-se mesmo com o invisível. É hora de avizinhar-se do que muda. Uma amiga que casa. Outra que separa. Um amigo que volta depois de exílio voluntário na terra de Sergio Cabral – nesse retorno, mergulha no mar de Iracema e se reapaixona pela cidade.


É sentimento vulgar esse de gostar das pessoas, das coisas e do tempo. Mais que outro, este é um mês vulgar. De repente, gosta-se, apaixona-se, ama-se. É tarde, mas é também cedo. É ainda fevereiro.


Foto do Henrique Araújo

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