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Adivinhar é preciso
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Adivinhar é preciso


Confiar no Facebook não é uma rima, tampouco uma solução. Mas, por incrível que pareça, tem funcionado. Se não para o longo prazo, ao menos para o dia seguinte. Quando Mark Zuckerberg diz que vai chover e sugere que tenha cuidado para não me molhar, chove e me molho. Como ontem. Fazia sol quando acordei. Desci para comprar frutas. Na volta, tomei chuva. Cheguei encharcado em casa. Ou antes de ontem, quando desisti de sair porque, contrariando o que dizia o FB, achei que choveria. Fez sol, e perdi um dia de passeio na praia.


Como quase tudo, a previsão climática é uma atividade inexata. Diz-se ciência para melhor passar, como os livros de autoficção que se fingem de vida real para atenuar tudo que carregam de invenção e turbinar suas vendas. Entretanto, dependemos dela, dessa casualidade. Calculamos nossas chances de sucesso ou fracasso a partir de seus prognósticos. Confiamos em seus algoritmos. Apostamos as fichas nessa roleta randômica. E perdemos. Ou ganhamos. Chove. Faz sol.


Cotejam-se variáveis e, dentro de um conjunto já suficientemente heterogêneo, outras variáveis, como uma matrioska. De modo que, se qualquer uma dessas pequenas peças muda de lugar, todo o quadro se altera. Daí a confusão. Vale pras nuvens e pra chuva. Vale pra vida também. Quando um tijolo sai do canto, o muro se desloca. Mesmo a imobilidade se transmuta. As dunas não se contentam com a quietude. Passeiam, e, nessa passagem, se desfazem. Remontam-se novas noutra geografia.


Para além de todo esse lugar-comum, porém, há algo nas previsões que se aproxima da poesia: nada é suficientemente claro até que aconteça. Nada prepara para a mudança, sobretudo a que não se anuncia. Uma hora, a gente olha pra trás e o que vê já é passado. Não o passado morto e enterrado. Mas um passado vivo, que nos interroga de volta e sentencia: impossível qualquer retorno. Para quem tenta a fuga, o passado é a pior escolha.


Então viajamos sempre para frente, nunca para trás. Fazemos isso amparados em previsões cujas bases movediças não disfarçam o seu caráter de truque. Não falo do trabalho respeitoso que é perscrutar o comportamento dos mares e ventos e depois anunciar se vai chover ou fazer sol. Me refiro à adivinhação da vida nova nas pequenezas do cotidiano. Mais ou menos como os profetas da chuva quando pelejam com o exercício da antecipação. Quando futuram, são mais poetas que profetas.


O que fazem? Leem a natureza. Plantas, animais, sombras. Interpretam os rastros do orgânico no que cerca. Veem sinais onde antes havia apenas o pouso da ave. São ordenadores de sentido. E, ainda que não decifrem letras e números, enxergam tudo como um grande texto, que inclui o quintal, a casa, o amor, o mundo. Praticam uma ciência imprecisa de trazer para perto de si o que é possível. Namoram a hipótese, mas com pé no chão.


É bonito o trabalho de um profeta da chuva. É bonita toda sorte de malabarismo que fazemos – com palavras e gestos – para habitarmos um tempo que ainda não chegou. Melhor ainda é quando esse tempo chega. Porque, correspondendo ou não ao que um dia foi previsão, tem uma qualidade que nenhum outro tempo tem: é presente. Goste-se ou não, está aqui. É agora. Se chover, tomaremos chuva. Se fizer sol, faremos um passeio.


Foto do Henrique Araújo

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