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Tá tudo bem, mas tá esquisito
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

Tá tudo bem, mas tá esquisito


Eu li isso num grafite na rua quando ia passando pela rede social mais perto da minha casa. Tá tudo bem, mas tá esquisito. Acho que foi escrito antes do Doria, o Cinzento, espécie de mago que vem transformando São Paulo numa Terra Média tão árida quanto a de Sauron, aquele espectro gente boa quando comparado a um prefeito cuja política de higienização ganhou um nome simpaticamente cínico: Cidade Linda.


Minha reação inicial foi concordar com a frase no muro. Depois, discordar. Para, em seguida, concordar de novo. Como um cientista amador, dissequei a sentença em duas partes iguais. Disso presumi que entenderia melhor o mundo. Duas orações, dois credos, dois deuses diferentes. Um do otimismo, outro do ceticismo. Sopesei cada uma delas: está tudo bem e está tudo esquisito. Quis escolher apenas uma como legenda para as primeiras semanas deste ano ainda indeciso entre a repetição do passado e a piora do futuro. Ou está tudo bem ou está tudo esquisito. Jamais as duas ao mesmo tempo.


Qual o quê. Por diversas razões, vi que não rolava. Não em 2017, o sucessor naturalmente trágico de 2016, que, por sua vez, carregou a tocha entregue por um estropiado 2015, um ano de ressaca do vexatório 2014 – que foi anticlimático se lembrarmos do disruptivo 2013. Logo, não seria fácil escolher entre dois estados d’alma radicalmente opostos. Talvez fosse possível em 2012 ou no já distante 2003, quando ainda tinha 22 anos e IPTU era uma sigla que meus pais pronunciavam raivosamente na hora do almoço. Mas não agora. Em 2017, tudo implica tudo, e todas as grandes dualidades brasileiras se nuançaram a ponto de se confundirem: PT X PSDB, esquerda X direita, Bolacha X Biscoito.


O grafite tinha razão. Estava tudo bem, não restava dúvida. Mas estava tudo esquisito também. E eu não saberia explicar ao certo por que está bem, tampouco por que está esquisito. Está tudo bem porque lá na bolha onde moro ninguém desejou que a ex-primeira dama do País morresse? Tudo bem porque lá na bolha ninguém fez piada com o comportamento do filho de Donald Trump? Tudo bem porque nessa mesma bolha (da qual saio raramente, admito) todo mundo execrou a hipótese de indicação de um jurista da Opus Dei para a vaga aberta no Supremo? Tudo bem porque na bolha as pessoas se julgam naturalmente inteligentes e por isso não levam a sério a possibilidade de Teori ter sido assassinado?


No Brasil de hoje, não saber distinguir entre duas noções opostas talvez tenha lá a sua função profilática – a própria ideia de oposição se diluiu, afinal. Saem as dualidades; entram as bipolaridades. Saem os consensos. Entram as conciliações. Saem os convencimentos. Entram os conchavos. Sai o diálogo. Entram os enfrentamentos. Sai a ética pública. Entra a religião.


O que me faz notar que esse grafite jocoso pintado num muro antes de Doria passar com seu spray é a tradução perfeita de um país como o nosso, onde todo mundo se sente feliz na maior parte do tempo. Somos felizes, e pronto. A felicidade está presente em nosso sangue tanto quanto hemácias e glóbulos brancos. Somos um povo organicamente feliz. Somos linchadores e felizes. Intolerantes e felizes. Misóginos e felizes. Homofóbicos e felizes.

 

Eis a grande contradição, expressa malandramente na segunda parte da frase, justamente a que introduz o argumento capitaneado por uma conjunção adversativa: apesar de toda hospitalidade e bondade expressas num jeitinho que o mundo inteiro aprendeu a admirar no brasileiro porque disso resultaram o futebol e o samba, temos essa vocação para aniquilar. O outro, com sua voz, cor, costumes, sexualidade e preferências, continua um insulto à regra geral. Tudo muito bonito, mas também muito esquisito.


Foto do Henrique Araújo

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