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Belchior não havia sumido
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Belchior não havia sumido


Uma característica do estado egoico é a sensação de que algo só existe se fizer parte do que se pode ter o domínio sobre. Para quem sente ou pensa assim, alguém some quando desaparece aos seus olhos. É muito cômoda essa postura possessiva. Difícil é aceitar muitas vezes quando quem admiramos nos abandona.


Com as notícias da viagem de volta de Belchior (1946 – 2017), no domingo passado (30/04), comecei a pensar se ele teria mesmo sumido nesses anos todos em que não pudemos vê-lo. Fiz isso à luz das lembranças do personagem Emil Sinclair, do livro Demian, do escritor germânico Hermann Hesse (1877 – 1962), talvez motivado pelo fato de que conheci a obra dos dois na inquietude da minha adolescência.


Ambos me impressionavam pela coragem que revelavam de seguir caminhos em direção a si mesmos, o que, de certo modo, me levou a ver com bons olhos a atitude de Belchior de preservar a proximidade que tinha consigo. O que era chamado de “sumiço” do compositor, para mim soava também como mensagem de negação da parte dele aos rumos tomados pelo mundo.


A aventura de Sinclair em busca da essência íntima de seu sangue murmurante, assim como a de Belchior no seu esforço de viver com o que brotava espontaneamente dentro dele, tinham em comum o conceito de trânsito pelos mundos luminoso e sombrio, onde está presente o deus Abraxas, simbolizado pelos antigos gregos como uma divindade formada por anjos e demônios.


Em 1992, quando produzi o LP América, da cantora Olga Ribeiro, fui convidado pelo divulgador Evangê Costa para um encontro com Belchior na casa dele (Evangê), no bairro do Monte Castelo. Lá ouvimos o disco, com faixas que iam de Eugênio Matos a Victor Jara, e, ao final, ele me falou que precisávamos mesmo escapar da pressão estética uniformizadora que dominava o cenário da música no Ceará.


As armadilhas da ideologia geracional, tão forte também no meio musical cearense, foi outro ponto da nossa conversa. Belchior, autor de Como nossos pais, me confortava com sua poética da pessoa e da atemporalidade. Em voz pausada, falava do ser pessoa como se de suas palavras voasse em luto o pássaro de pedra de Sinclair, num bater de asas do corvo do escritor estadunidense Edgar Allan Poe (1809 – 1849).


Por ocasião do lançamento do CD O Peixe, de Abidoral Jamacaru (1998), Belchior reforçou para mim o seu desencanto com o mainstream. Disse-me que não se sentia parte desse mundo das gravadoras. Do mesmo jeito que tinha experimentado ser seminarista, estudante de medicina e artista do primeiro time da Música Plural Brasileira, ele tentou ser empresário, chegando a adquirir o selo paulista Cameratti, em sua reciclagem de sonhos de viver perto do que sentia, pensava e fazia.


Todo dia, por motivos diversos, artistas são largados ao anonimato, e esse sumiço parece tão normal. A opção de Belchior de seguir um caminho que provavelmente mais uma vez o levou a si mesmo causou alvoroço porque foi por vontade própria, comportamento inaceitável em uma sociedade possessiva. Tendo ou não o direito de ausência, Belchior acaba de tomar outro rumo, desta vez ainda mais desconhecido. Apesar da comoção, muitos estão contentes porque ele apareceu, mesmo morto. Assim, paradoxalmente, fica mais fácil dizer que ele é imortal. E ninguém mais vai precisar dizer que ele sumiu.


Foto do Flávio Paiva

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