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Elucidário desafetivo do medo

17:00 | 22/04/2017

 
Não é nostalgia querer que Fortaleza volte a ser segura como foi há muitas décadas. Poder andar pelas ruas sem a sensação de que algo violento acontecerá na próxima esquina.

Resisto a comparações, mas as viagens para fora daqui estão se tornando um incômodo no regresso.

E não é porque um país tal e mesmo algumas cidades brasileiras são mais encantantes ou o povo de lá é mais bacana do que o daqui. Isso é babaquice de turista, deslumbre de quem está de passagem.

A dor de cotovelo, no retorno, é o reencontro com a possibilidade de ser assaltado. De ser morto por uma arma de fogo. De ter o carro, violentamente, afanado...

De não poder aproveitar a rua sem ameaças e a preocupação com horários. De estar inseguro até em casa e rezar pelos filhos que estão se divertindo na noite...

Causamos espanto nos outros quando chegamos lá fora. Pela narrativa do medo que não desimpregna. Um elucidário revelante do quanto a violência urbana já viralizou em nossas falas e atuação.

O corpo vai nos entregando. Antes de ir por uma rua que julgamos suspeita, ele resiste e empanca. Espera o aval do cicerone ou aguarda o estímulo para desfazer do travamento de se deslocar por ali.

Virou patológico o “tilte” que se dá em alguns de nossos sentidos. Olhar um estranho, um muito diferente, também nos aciona a memória cotidiana do receio que tomou Fortaleza.


Assim, a violência urbana vai moldando a percepção. Fazendo incorporar a composição daquele que pode ser perigoso, do suspeito. O maltrapilho, o que fede porque mora na rua, o da favela, quem não for branco, o flanelinha, o carroceiro... O estereotipado.

Nem percebemos, mas vamos nos adoentando com a insistência da sensação de insegurança. Uns mais graves. Outros incorporados ao dia a dia e naturalizado a mazela feito gripe besta ou estratégias para redução de danos.

O celular do ladrão, a bolsa do bandido, o porta dinheiro por dentro da calcinha o bolso falso na cueca. O carro blindado dos ricos...

As câmeras. A cerca elétrica. O aço dilacerador. Os milicianos do quarteirão. A imposição do seguro pra tudo. Os condomínios fechados com a ilusão do filme A Vila. E o mantra: “entrega tudo e não reage, mas vale a vida!”.

Uma anomalia, típica do mito da metrópole, não definida nos glossários de doenças e acochambrada no tal trauma pós passamento violento em qualquer canto da Cidade.

Hoje, todos os bairros são endêmicos. Daí quase ninguém deixar de ser um narrador do violento. Ter duas ou três histórias para dizer. Experiência própria, um vizinho, o parente, ou alguém conhecido de alguém.

Não é banzo querer que Fortaleza volte a ser segura como foi há muitas décadas...

É ter pelo menos a perspectiva de que outras gerações de meninos e meninas não será seduzida pelo tráfico de drogas e armas. Nem vá virar assaltante nem queira tocar fogo em ônibus e na Cidade que os exclui...


DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br 

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